No dia 28 de fevereiro deste ano, foi deposto o presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide. Exilado, o ex-padre queixou-se de não saber para onde o avião da Força Aérea Norte-Americana o levava. Acusou americanos e franceses de seqüestro e omissão. A acusação é plausível, visto que Aristide nunca havia estado na República Central Africana, país submetido a interesses militares e econômicos da França, para onde o ex-presidente foi levado à revelia.

Bangui, capital do país africano, é tida como a cidade mais violenta do mundo -tão violenta que, há dois anos, os Estados Unidos fecharam sua embaixada por lá-. O exílio chamou a atenção da Comunidade Caribenha (CAPRICOM) e da União Africana, além da África do Sul, Panamá, Venezuela e países do Caribe, que pediram à ONU uma investigação séria sobre a saída de Aristide. Panamá e Venezuela chegaram a oferecer asilo político ao presidente.

A crise haitiana tem diversas faces; em sua maioria, não muito claras. Suas raízes estão entrelaçadas com a história revolucionária do país. Desde que assumiu o compromisso de pagar US$ 90 milhões à França como indenização por sua independência, o Haiti sucumbiu em dívidas que nunca serão quitadas. Além disso, sofreu com o embargo promovido pelas potências colonialistas do Séc. XVIII, que temiam que o levante escravo levasse a revoltas em outras colônias.

Quando a ilha de São Domingos perdeu seu potencial econômico, os franceses a deixaram de lado, dando margem à atuação do imperialismo norte-americano. Sua ocupação (1915-34) trouxe à ilha bombardeios aéreos e uma instituição que marcaria o resto da história do país: o exército, criado pelo Congresso americano e dissolvido por Aristide em 95, sem nunca ter enfrentado um inimigo externo. Foi responsável por repressão, massacres e golpes dentro do país. Principalmente durante os mais de 25 anos da ditadura sanguinária da família Duvalier.

Nesta época, Aristide era um padre da Teologia da Libertação que proclamava a preferência de Deus pelos pobres e enfrentava forte oposição da política americana de Ronald Reagan, que via aquela atividade mais como comunista do que cristã. Isso estava longe de ser o suficiente para barrar sua vitória nas primeiras eleições democráticas do país. Com 67% dos votos, foi declarado presidente no primeiro turno do pleito de 1990.

Fazer frente aos americanos nunca foi fácil. A primeira administração Bush investiu pesado no país, financiando o grupo paramilitar FRAPH, que ganharia projeção nacional na deposição do presidente Aristide, em setembro de 1991. Por três anos, grupos civil-militares governaram o país, num período que culminou com a morte e a fuga de centenas de milhares de haitianos.

A volta de Aristide aconteceu durante o governo Clinton, em 1994. Mas sete semanas depois, os republicanos tomaram conta do Congresso americano, bloqueando o suporte financeiro ao Haiti. Esse suporte havia sido aprovado pelo BID (Banco Inter-Americano de Desenvolvimento) para o aprimoramento de infra-estrutura básica, hospitais, escolas e estradas no Haiti.

De acordo com a lei internacional, a conta dos empréstimos deveria ser paga independentemente de onde o dinheiro fosse aplicado. De fato, os Estados Unidos nunca cortaram o financiamento ao Haiti; a questão é que não foi direcionado à infra-estrutura, como requisitava o BID, mas ao financiamento de grupos militares e ditaduras: 40% do US$ 1,134 bilhão emprestado entraram no país durante as ditaduras Duvalier. Ou seja, o dinheiro não foi usado em prol da população, mas para oprimi-la. Em julho de 2003, o Haiti entregou 90% de suas reservas externas a Washington como pagamento de juros.

Se aplicados os mesmos juros que impedem que o Haiti pague sua dívida externa ao ressarcimento da multa que o país pagou à França após conseguir sua independência de forma revolucionária, a antiga Metrópole teria de devolver à colônia nada menos do que US$ 21.685.135.571,48. A proposta foi feita por Aristide e, obviamente, recebida com escárnio pelos franceses. É o absurdo que o povo haitiano tem de encarar desde sua independência: pagar em dinheiro o que seus ancestrais escravos pagaram com sangue.

Atualmente, na administração Bush, velhos republicanos foram trazidos à tona para tratar das questões internacionais com a mesma truculência do passado. Para a América Latina, Bush priorizou diplomatas com passado pouco louvável e índices de reprovação calamitosos na Câmara americana, como o lobista da empresa armamentista Lockheed Martin, Otto Reich, encarregado de minar as bases de Hugo Chávez na Venezuela e Roger Noriega, antigo desafeto de Aristide.

Otto Reich tem feito um “belo” serviço: todos os antigos militares haitianos condenados à prisão perpétua por crimes contra a humanidade e chacinas nos períodos ditatoriais estão de volta às ruas. É o caso do antigo guarda presidencial dos Duvalier, Prosper Avril, que tem em seu currículo torturas e tratamentos indignos a políticos de oposição, professores e até a um médico comunitário. Maior responsável pela atual deposição de Aristide, Guy Philippe também é protegido dos norte-americanos, apesar da negação do Secretário de Estado Collin Powell: foi treinado por eles em uma base militar no Equador e traz entre seus maiores ídolos George W. Bush e o ex-ditador chileno Augusto Pinochet.

Escravos haitianos constituíram primeira república negra da história

Descoberta por Cristóvão Colombo em 1492, a ilha de São Domingo “entrou no mapa” em 1505, com a plantação da cana-de-açúcar, importada das ilhas canárias. Aportaram também os navios carregados de escravos da África Ocidental. Com o fim do potencial exploratório do ouro no território, os espanhóis partem rumos ao sul, deixando o território à mercê de piratas franceses. A França receberia a soberania da ilha por tratado, em 1697.

São Domingo entra então em seu período de maior prosperidade, com a exploração do açúcar. Com base no trabalho desumano de quase 500 mil negros, a colônia torna-se a mais rica do mundo.

Em 1789, os ecos dos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade chegam à colônia, dando esperança aos escravos mais rebeldes -especialmente aqueles foragidos nas montanhas do interior, conhecidos como cimarróns, não só no Haiti, mas em outras ilhas do Caribe-, que começam a se rebelar contra seus senhores. Sua população é dez vezes maior que a de seus senhores. Em agosto de 1791, inicia-se a rebelião que, em 13 anos tornaria o país independente, sob o comando do negro Toussaint Louverture, que joga com a rivalidade entre Espanha, França e Inglaterra conquistando o domínio sobre todo o Haiti e botando para correr o temido exército de Napoleão Bonaparte.

Ao fim da Revolução, o recém-batizado Haiti está em ruínas e não tem mais o valor dos velhos tempos. Temendo a disseminação do ímpeto revolucionário, a França opta pela mais prática das soluções: joga o país no isolamento e no esquecimento. Não reconhece sua independência até 1804, quando é estabelecida a multa pelos danos causados à Metrópole. A outra República das Américas, os Estados Unidos, também não se interessa pelo comércio de produtos de base com a “ilhazinha dos pretos”.

Desde então, o Haiti viveu às voltas com golpes, revoluções e revoltas.

Entrevista

Dudley Mocombe, 26, estudante haitiano de teologia, residente no Brasil

Qual a sua opinião sobre a postura do governo brasileiro em relação ao Haiti desde o início dos protestos violentos contra Aristide?
O Brasil não teve uma influência nem favorável nem desfavorável diante do conflito no Haiti. A relação diplomática entre os dois paises é muito fraca, pelo fato de que o número dos haitianos vivendo no Brasil não ultrapassa cem e vice versa. O Brasil caiu de pára-quedas ao aceitar encabeçar a força de ocupação da ONU no Haiti. Eu diria que o Brasil inocentemente assumiu esse compromisso de ajudar no restabelecimento da paz e está desempenhando uma boa tarefa. Que essa missão realmente cumpra o seu objetivo.

- Como o você avalia a postura da França e dos Estados Unidos em relação ao Haiti?

- A França é o demônio que está por trás de todos os últimos tumultos contra o presidente Aristide. Os franceses estão revoltados porque o presidente Aristide pediu o reembolso de US$ 21 bilhões pagos durante o governo de (Jean-Pierre) Boyer, o quarto presidente do Haiti depois da independência. O dinheiro foi pago sob ameaça de uma eventual volta dos franceses. Durante a comemoração do bicentenário da independência, o presidente Aristide pediu formalmente ao governo francês o reembolso. Aí, os jornais franceses começaram a minar as bases de Aristide.

Os Estados Unidos são uma faca com dois gumes. O partido democrata apoiava os simpatizantes do Aristide e o republicano, a oposição e os rebeldes. O embaixador dos Estados Unidos no Haiti é um governador paralelo: suas declarações muitas vezes têm mais peso do que as do próprio governo.

- Qual a influência da revolução negra para o governo Jean-Bertrand Aristide e suas duas deposições?

- A chegada do Aristide na presidência em 1991 foi terrível para os imperialistas e mostrou a sabedoria da maioria do povo haitiano que almeja uma vida digna. Durante os sete meses de seu governo, se respirava um ar de esperança, de liberdade, de solidariedade. A luta do povo nunca foi aceita e apreciada pelos imperialistas. O primeiro golpe se deu justamente depois de uma participação efetiva do presidente na ONU.

A revolução negra criou o medo de que o Haiti fosse referencial para a luta da libertação do povo negro no mundo inteiro. Enquanto o povo haitiano permanecer na miséria, ele é frágil e não atrapalha a máquina opressora dos imperialistas. O Haiti ajudou países como Bolívia, Venezuela e Colômbia a conquistar sua independência.

- Qual a importância do Haiti para os povos negros da atualidade?

- O Haiti não tem uma importância capital para os povos negros da atualidade, justamente porque o povo haitiano está mergulhando na miséria; é o povo mais empobrecido da América. Haiti, que outrora era considerado a pérola das Antilhas, o farol da liberdade do povo negro no mundo. A política dos imperialistas é exatamente fazer que Haiti permaneça à margem, na pobreza, para que a sua libertação não tenha respaldo mundial.

- A atual transição política tende à democracia ou a instabilidade deve permanecer? Por quê?

- A atual transição política é muito frágil. No momento, ninguém pode prever o que o povo fará, pois levaram seu presidente amado e querido e, até agora, não houve reação. É uma grande mentira negar a popularidade de Aristide. Por enquanto, as atenções estão voltadas para a realização das eleições no final de 2005, embora o governo da transição tenha uma política suja de perseguição aos simpatizantes do Aristide. O ex-primeiro-ministro de Aristide, Yvon Nepturne está preso, além de senadores e deputados. Criminosos condenados estão soltos. A situação é complexa e difícil, não se pode ter noção do futuro.

- Como você avalia a cobertura que a imprensa brasileira tem feito sobre a crise no Haiti?

- Eu acho que a imprensa brasileira tem feito uma cobertura razoável da situação, embora se perceba um certo preconceito. Não se pode comparar o governo do Aristide com a ditadura de Jean-Claude Duvalier. Não admito também que o Haiti seja o país mais pobre da América; ele é o país mais empobrecido, pois, ainda hoje, guarda muitas riquezas naturais que não estão sendo exploradas, como a coragem e a determinação do povo, sua alegria, o clima, a natureza, as praias, os lugares históricos etc.

Eu queria acrescentar que há uma diferença em se falar de Ilha do Haiti e República do Haiti. A ilha inclui a Republica Dominicana que é outro povo, com outra história. Há duas línguas oficias que são Françês e Creole. Ao contrário do que costumo ouvir, o creole não é um dialeto, é uma língua que tem gramática, hoje ensinada nas escolas. É uma língua que resulta de uma junção de vários dialetos falados na África com o francês. Existe, inclusive, algumas palavras de origem portuguesa.