A polêmica criada em torno do tema dos arquivos da ditadura revela que a memória ainda é um tabu no Brasil. Mais do que um tabu, na verdade, ela é considerada como um elemento perigoso. E, de fato, pode ser. A história da ditadura militar que mergulhou o país em duas décadas de repressão ainda permanece nas sombras. Assim como outros períodos importantes da história nacional. O esquecimento e a negação da memória têm sido um traço marcante no comportamento das elites brasileiras. O passado é visto como uma presença incômoda que deve ser soterrada em nome da tranqüilidade do presente. Tranqüilidade para quem, deve-se perguntar. Uma pessoa, uma cidade, um povo ou um país que desconhece sua história e esquece seu passado, caminha sem rumo para o futuro. Tirar a nossa memória das sombras pode ser a decisão que falta para o Brasil começar a trilhar outros caminhos. Uma tarefa que vem sendo permanentemente adiada.

Adiar tarefas necessárias é uma prática facilitada pelo exercício do esquecimento. Ao esquecer quem somos, qual é a nossa história e como chegamos até aqui, tudo se passa como se estivéssemos sempre recomeçando do zero. Essa ideologia do esquecimento costuma vir acompanhada da promessa de um futuro grandioso que estaria logo ali na frente se conseguíssemos frear o desejo de olhar para trás e testemunhar a caminhada percorrida. A política brasileira é impregnada por essa cultura. Os pedidos na linha "esqueçam o que disse", "esqueçam o que fiz", "o importante é olhar para a frente e não para trás", "não devemos dirigir olhando para o retrovisor", seguem habitando e estruturando discursos e práticas. Como um fantasma apavorante, o passado segue sendo alvo de exorcismos diários, à esquerda e à direita.

O valor de verdade da memória

Uma boa pista para entender a natureza deste processo recorrente de exorcismos pode ser encontrada numa passagem do livro "Eros e Civilização", de Herbert Marcuse. Na primeira parte do texto, "Sob o domínio do princípio de realidade", Marcuse fala, entre outras coisas, do papel da "recordação das coisas passadas como veículo de libertação". A referência aí é, obviamente, o pensamento de Freud. Marcuse assinala que se a memória ocupa um papel central na psicanálise como um modo de cognição, isso tem a ver com o "valor de verdade" da memória. Em que consiste esse "valor de verdade"? Marcuse responde: "o seu valor de verdade reside na função específica da memória, que é a de conservar as promessas e potencialidades que são traídas e até proscritas pelo indivíduo maduro, civilizado, mas que outrora foram satisfeitas, em seu passado remoto, e nunca inteiramente esquecidas".

Se é assim, uma pergunta se impõe imediatamente. Em que sentido, uma reabertura dos arquivos da ditadura militar, uma "recordação das coisas passadas", nos diria algo, não só acerca de um passado recente, mas sobretudo do nosso presente e das linhas gerais do futuro que nos aguarda? Quais foram mesmo as promessas e potencialidades traídas e proscritas pelas cerca de duas décadas de regime militar? Ou ainda, e mais fundamentalmente: em que sentido resgatar essa memória perdida implicaria riscos para o presente e o futuro do país?

Se a memória tem um conteúdo cognitivo, ou seja, se ela tem algo a nos ensinar sobre nosso presente, sobre quem somos hoje, sobre nossas escolhas atuais e sobre o modo como nos movemos no mundo, por que encará-la como um inimigo perigoso?

As promessas traídas

Há vários caminhos para abordar esse conjunto de questões. Um deles é enfocar o tema das promessas e potencialidades traídas. O golpe militar de 1964, nunca é demais lembrar, foi patrocinado pelas elites econômicas e políticas brasileiras que viam no governo João Goulart uma ante-sala para a instalação de um regime comunista no Brasil. No caldo cultural da Guerra Fria, as propostas de reformas de base propostas pelo governo constitucional de então foram atropeladas por tanques e fuzis, sob o aplauso entusiasmado de empresários, fazendeiros e grande parcela da Igreja Católica e da classe média.

Não é o caso, aqui, de reconstituir a gênese e as motivações da interrupção da jovem e frágil democracia brasileira, mas é bom lembrar que, entre outras coisas que foram golpeadas, estava o desejo de construir um país mais justo, livre e soberano. Veio a ditadura, o país sofreu profundas transformações econômicas, milhares de pessoas perderam direitos, dignidade e a própria vida. E, sobretudo, os ricos continuaram mais ricos e os pobres continuaram mais pobres, movimento que perdura até hoje, mesmo com outro desenho constitucional.

O Brasil se viu livre da ameaça comunista e se viu livre também das promessas de construção de uma República que mereça este nome. Do ponto de vista republicano, caminhamos para trás, um recuo cuja interrupção permanece também sendo uma promessa. Não é difícil constatar, portanto, que recordar essas "velhas coisas passadas" significa, entre outras coisas, lançar um olhar crítico sobre a estrutura de poder político-econômico (e militar, portanto) que segue, com inflexões diferenciadas, ditando os rumos do país. Mais uma vez, o texto de Marcuse pode ajudar a iluminar o que está em jogo nesse espaço de promessas traídas e proscritas. "O passado redescoberto", escreve, "produz e apresenta padrões críticos que são tabus para o presente". O peso dessas descobertas, acrescenta, tem o potencial de "despedaçar a estrutura em que foram feitas e confinadas". Ou seja, conclui, a libertação do passado não termina com a sua reconciliação com o presente.

A força explosiva dos mortos

Aqueles, portanto, que vêem na reabertura dos porões sombrios da memória nacional recente um elemento explosivo capaz de sacudir os atuais arranjos institucionais estão justificados a expor esse temor. De fato, se a libertação do passado não implica sua reconciliação com o presente, isso quer dizer que ela (a libertação) aponta para uma orientação sobre o futuro, uma nova orientação. Não é acidental que tantos governantes brasileiros, uma vez chegando ao poder, apressem-se em repetir discursos que fazem a apologia do esquecimento, esquecimento do que foi dito, do que foi feito e também daquilo que não foi.

Se tudo isso é razoável, somos levados a uma conclusão que pode ser perturbadora para muitos espíritos. Levar o tema da memória a sério, encará-la como uma tarefa estratégica tão importante para o desenvolvimento do país como a manutenção de uma política fiscal responsável, pode libertar elementos desestabilizadores do atual esquema de poder.

Trazer os mortos à luz teria, assim, uma força explosiva, talvez insuportável. Empreender uma busca do tempo perdido, observa ainda Marcuse, converteria-se, deste modo, em um veículo para uma futura libertação. E essa conversão estaria alicerçada em mais um conjunto de perguntas incômodas. Em nome do que mesmo estamos autorizados a patrocinar crimes, torturas e assassinatos? Que nome dar ao silêncio e à cumplicidade diante desses crimes? Por que dar nome aos mortos implicaria um fator de desestabilização da República? Ou, de um modo mais geral, por que dar nome às coisas representa um perigo para a ordem vigente, seja ela qual for?

O que essas perguntas indicam é que o tema da abertura dos arquivos da ditadura está longe de ser um tema menor. Pelo contrário, é um assunto que toca no coração do poder, um poder que se adapta permanentemente aos novos tempos e cuja adaptação exige sempre o encarceramento da memória. Os agentes protagonistas do poder sabem disso há séculos e não é por outra razão que ligam as sirenes quando alguém se atreve a falar sobre a importância da recordação das coisas passadas. Freud explica ou, ao menos, indica um bom caminho para essa explicação.

Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior