Leonardo Boff

Leonardo Boff abandonou os hábitos de padre católico treze anos atrás, mas mesmo assim, ignorando as leis eclesiásticas, de tempos em tempos realiza batizados na cidade de Petrópolis, nas favelas cariocas ou em algum assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, do qual é conselheiro espiritual e fonte de inspiração ideológica. Além de batizar sem autorização e de ter assessorado a Convenção Nacional de Prostitutas do Brasil, Boff desafiou o próprio Vaticano de João Paulo II e a versão contemporânea da Santa Inquisição, conduzida por Joseph Ratzinger, que duas vezes ordenou que Boff observasse “obsequioso silêncio”.

Em Petrópolis, município do interior do Rio de Janeiro que deve seu nome ao imperador Dom Pedro II, que ali ergueu seu faustoso Palácio de Verão, Leonardo Boff estabeleceu seu domicílio, mesmo não sendo ele afeito ao luxo palaciano nem aos valores dessa Igreja comparável, diz, com uma “monarquia absolutista espiritual”. Nada como os fastos funerários e midiáticos em honra do falecido João Paulo II para ilustrar os excessos que desagradam o austero Boff.

Na primorosa Petrópolis, este teólogo doutorado na Alemanha e autor de mais de 60 livros concordou em conversar longamente sobre o legado papal, seus paradoxos e o porvir que espera à Igreja.

Educado desde os 12 anos na Ordem dos Franciscanos, à que também pertence o “papável” brasileiro cardeal Cláudio Hummes, muito cedo, Leonardo Boff fez sua “opção preferencial pelos pobres”, lema que identifica os que aderiram à Teologia da Libertação. Dessa corrente doutrinaria, perseguida pelo Vaticano nestes últimos 26 anos, Boff é um dos intelectuais de referência, junto com seus compatriotas Frei Betto, Pedro Casaldáliga e o falecido Hélder Câmara.

As perseguições papais

“O legado de João Paulo II é complexo e deve ser interpretado sob a luz da história de um pontificado muito extenso, um dos mais prolongados da história. Ainda assim, diria que, com respeito à Teologia da Libertação, o papa teve uma atitude quase persecutória, diferente daquela que, nos anos 1960, teve João XXIII, sensível à modernização iniciada com o Concílio Vaticano II”, sentencia Boff.

Apesar das acusações sobre a hostilidade da Santa Sede contra o catolicismo progressista, Boff admite que, em seus últimos anos, Carol Wojtyla atualizou seus pontos de vista.

“O papa teve duas fases. Na primeira, quando ainda existia e atuava o império soviético, ele era radicalmente contra a Teologia da Libertação, porque a interpretava como o Cavalo de Tróia do marxismo. O papa não gostava do marxismo e com razão porque, pela sua experiência com o stalinismo, temia que ele perseguisse a religião e viesse a oprimir vastas dimensões da cultura. Depois veio a queda do império soviético e o comunismo já não era ameaça para ninguém. O papa percebeu que para a América Latina a grande ameaça eram o capitalismo selvagem e as elites sociais insensíveis. Tanto foi assim que chegou a escrever, em uma carta para os bispos brasileiros, que a Teologia da Libertação é mais do que útil, é necessária”.

Na interpretação de Boff, o papa, de algum modo, foi vítima da sua própria medicina: ao associar-se com Washington na sua cruzada anticomunista, acabou “comprando” informação intoxicada.

Hoje sabemos que os dados sobre a Teologia da Libertação chegaram a ele através da CIA. Historicamente, o Vaticano e os Estados Unidos nunca tiveram afinidade, mas durante os anos de (Ronald) Reagan estabeleceram relações muito próximas, o que abriu vias de informação secreta. Veja o que aconteceu nos anos 1980, quando o papa chegou na Nicarágua, então com um governo socialista, e guiado pela informação da CIA, atacou, e atacou muito duramente, a Igreja dos Pobres.

“Com respeito à Teologia da Libertação, o senhor diria que João Paulo II foi incauto ou que foi ardiloso?” perguntei.

“Nem uma coisa nem outra. Acho que fui vítima da sua boa vontade. Isso quer dizer o seguinte: em seu raciocínio o papa dizia ‘eu quero o melhor para a América Latina e o melhor é nada de marxismo, porque marxismo eu conheço melhor do que ninguém’, dizia sempre”.

Trezentos entre os quase 400 bispos que integram a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, foram nomeados por João Paulo II, que, desse modo, literalmente “limpou” a cúpula eclesiástica de vozes rebeldes. Talvez como último ato da sua missão, no começo deste ano, o papa demitiu (a rigor, não o autorizou a continuar na sua dioceses quando fez 75 anos) o bispo Pedro Casáldaliga.

“Ainda resta vitalidade aos seguidores da Teologia da Libertação para brigar dentro da Igreja institucional?”, perguntei novamente.

Boff responde sem hesitar: “Essa teologia continua viva, não importa se o papa condena ou deixa de condenar. Depois de 26 anos de João Paulo II, a pobreza e a exclusão continuam as mesmas, e uma Igreja verdadeiramente responsável, integrada por bispos que cumpram a sua missão pastoral, deve dar resposta para esses problemas. Teólogos e religiosos de todo o mundo vieram, este ano, ao Fórum organizado em Porto Alegre em janeiro. E, em março, a outro encontro também significativo, em El Salvador, nos 25 anos do assassinato do bispo Oscar Arnulfo Romero. Ali, o bispo emérito de Chiapas, Samuel Ruiz, leu uma carta enviada por Casaldáliga”.

“É curioso, mas se alguém perguntasse aos milhões de peregrinos que deram seu último adeus ao papa o que lembram dele, talvez o primeiro que lhes venha à memória seja um gesto, e não uma frase”, reflete Boff, que completa: “o Papa foi um líder carismático de grande irradiação, em uma sociedade órfã de líderes. Os que hoje temos são líderes belicosos, como George Bush, ou meros burocratas, como Gerhard Schroeder, ou mafiosos, como Silvio Berlusconi. Não temos um Conrad Adenauer (presidente alemão do pós-guerra) ou uma Madre Teresa de Calcutá. Nesse vazio de referências, emergiu a figura do papa, mesmo ele sendo conservador em termos de uma moral estrita, que ninguém seguiu, nem os próprios católicos.

Ele demonstrou grande capacidade de convocatória ao falar da paz e da espiritualidade contra a guerra de qualquer tipo, mesmo a promovida pelo Império. Nesse sentido, ele, e toda a publicidade que o cercou em vida, conseguiu resgatar a religião no mundo da globalização que tinha sido desmoralizada pelo pensamento dos mestres da suspeita: Nietzche, Freud, Marx e uma longa lista de et ceteras. O papa resgatou a religião como poder político, tanto pode ajudar a derrubar um império quanto pode resgatar valores”, garante.

“Senhor Boff, na sua opinião, o papa foi mais um líder carismático do que um estadista?”

“Acho que foi um líder carismático, mas também foi um estadista. Foi um estadista na mediação entre Argentina e Chile, que evitou uma guerra em 1978, dialogando com Yasser Arafat e apoiando um Estado Palestino, condenando solitariamente a guerra contra o Iraque e chamando Bush e José Maria Aznar, um católico, para que parassem com isso, porque não existe guerra justa, nem guerra santa: toda guerra é injustificável porque é perversa, 90% são civis e não militares. Mas, dando uma olhada no mundo e fazendo balanço do que encontrou e o que deixou, poderia dizer que João Paulo II confundiu o mundo com Roma, e confundiu Roma com a Polônia e a Polônia com Cracóvia. Ou ele era muito centrado no Ocidente e na Igreja, com essa arrogância de que a Igreja é a religião verdadeira, única herdeira de Cristo e que tem o monopólio do discurso ético para a humanidade. Tudo isso fez com que fosse tão rígido em suas posições e com que perdesse, de algum modo, a perspectiva”.

“O senhor diria que o projeto histórico de João Paulo II fracassou?”

“Um dos legados políticos do papa foi ter-se articulado junto com Reagan para derrubar o império soviético, que, como reconheceu Mikail Gorbachov, não teria caído pacificamente sem a ajuda do Vaticano. Só que com isso o papa aproximou-se demais do capitalismo, sem manter uma distância crítica. Isso significou, não digo que a aprovação papal da moral do capitalismo, mas sim que chegassem a compartilhar objetivos comuns. O próprio papa deveria ter compreendido a sua contradição quando viu que no Leste europeu, depois da caída do Muro de Berlim, o que veio não foi mais justiça, mais solidariedade: pelo contrário, entrou o capitalismo selvagem, a pornografia, a Polônia aprovou o aborto legal, decepcionando profundamente o papa”.

Candidatos latino-americanos

Para Boff, os “papáveis conservadores latino-americanos”, grupo no qual se coloca o mexicano Norberto Rivera Carrera, o argentino Jorge Bergoglio e o colombiano Darío Castrillón Hoyos, pouco contribuiriam para a transição que, acredita, deve começar com o próximo pontífice.

“Acredito que nenhum desses conservadores deveria chegar a ser papa, porque seria mais do mesmo que já vivemos nestes 26 anos. A Igreja não agüenta outro papa conservador, seja ou não da América Latina”, destaca Boff, e dedica uma menção ao arcebispo de Buenos Aires, sobre quem pesam suspeitas de conivência com a ditadura bonaerense.

“Bergoglio precisaria dar muitas explicações sobre uma mancha em sua biografia. Por isso, na minha opinião, Bergoglio está excluído “ad limine”, antes mesmo de qualquer votação. Acredito que um papa não pode ter tido qualquer envolvimento com os militares. Não podemos esquecer que até hoje é visto como um escândalo que João Paulo II tenha celebrado missa com Pinochet. Isso é imperdoável em um papa e não devemos repetir o mesmo erro”.

Na hora de escolher candidatos entre os 115 que participarão do conclave cardinalício, marcado para 18 de abril, Boff escolhe dois latino-americanos: o hondurenho Oscar Rodríguez Maradiaga e o brasileiro Cláudio Hummes.

“Maradiaga e Hummes garantiriam uma continuidade doutrinária, porque a Igreja sempre zela por isso e significaria outra prática social. O arcebispo de Tegucigalpa é um poliglota de grande erudição e o homem que conseguiu conter as perseguições que aconteciam na América Latina contra os religiosos dissidentes. Ele tem uma dimensão social muito grande e conseguiu o que ninguém havia conseguido antes: que Ratzinger e os homens do Santo Ofício conversassem com os teólogos da libertação e deixassem de ouvir os nossos detratores”.

Ambos possuem o perfil de papa de que precisamos, um pastor, não uma autoridade dentro do poder eclesiástico. Um pastor que seja aberto ao diálogo com o mundo científico, com outras religiões e que esteja decidido a encarar dois temas ineludíveis, no meu ver: a justiça social e a justiça ecológica.

O “papável” de Lula

Embarcado na sucessão papal como se dela dependesse a sua própria reeleição presidencial, Luiz Inácio Lula da Silva, longe de guardar o segredo a que são obrigados os 115 cardeais que entrarão no conclave, em 18 de abril, proclamou seu “voto cantado” pelo seu amigo, o “ papável” Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo.

Conhecedor dos jogos de poder vaticanos e brasileiros, Boff afirma que a consagração de Hummes seria “extraordinária” para Lula e explica por que: “’Dom Claudio’, transformado em Papa, reforçaria enormemente a figura internacional de Lula que, assim, acrescentaria uma dimensão religiosa e espiritual à sua liderança política. Quem quer que seja, em qualquer lugar do mundo, iria relacionar as duas figuras. Por quê? Primeiro porque eles são amigos desde os tempos em que o cardeal Hummes, sendo bispo de Santo André, no cordão industrial paulistano, escondeu Lula na Igreja, enquanto a ditadura ameaçava o Lula metalúrgico por suas atividades sindicais. Dessa história restou uma gratidão que o presidente expressa todo 1 de maio, participando nas missas de Hummes, as quais nunca deixou de ir. Em 2002, ele encerrou sua campanha presidencial justamente na frente da Igreja onde Dom Cláudio deu-lhe abrigo”.

Dando um destaque que poucos mandatários sul-americanos concederam às exéquias papais - o argentino Néstor Kirchner e o chileno Ricardo Lagos não foram -, Lula esteve na Basílica de São Pedro acompanhado pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Itamar Franco e José Sarney.

Tamanha mobilização suscitou alguns comentários sarcásticos, como o de um dos quatro cardeais brasileiros com direito a voto papal, Eusébio Scheid, para quem “Lula não é católico, senão caótico”.

Hummes replicou o ataque do seu colega e defendeu seu amigo presidente, mas evitou que a polêmica fosse mais longe, justamente quando está em jogo sua carreira pelo poder, e qualquer passo em falso pode deixá-lo sem chances.

Leonardo Boff define Hummes como um homem “doutrinariamente conservador, igual a João Paulo II, mas avançado em termos sociais. Ele é pastor da Igreja dos pobres, como declarou ao chegar em Roma. É alguém que entende o discurso dos operários, dos camponeses”.

Contudo, entre as comunidades eclesiásticas de base, onde está concentrado o ativismo da Teologia da Libertação, ouve-se que Hummes deixou de lado seu velho compromisso social. “O senhor diria que ele deu uma virada?”, perguntamos a Boff.

Em termos doutrinários ele deu, sim, é conservador em temas morais e na sua concepção sobre a família, mas em termos de sociedade sempre foi aberto o que, no contexto dos outros ’papáveis’, coloca-o como um postulante progressista.

Intelectualmente, é um homem qualificado, é um teólogo de boa formação, tivemos muitas disputas filosóficas, ele vem da neo-escolástica, tem uma visão mais substancialista do mundo, não entende bem a filosofia moderna e a fenomenologia, Heidegger etc.

Sua condição de latino-americano dificilmente atrai os votos dos seus colegas da região, e não sei se todos os cardeais brasileiros irão votar nele. Hummes tem 70 anos, porém como cardeal é novo e ainda não demonstrou quem é.

Em seu favor pode pesar o fato de ter bom trânsito no Vaticano, uma vez que esteve na Cúria Romana e na Pastoral da Família, o que favorece seu perfil de conciliador, de alguém que pode ser uma ponte entre o Primeiro e Terceiro Mundo. Acho que, em certas circunstâncias, o cardeal alemão Joseph Ratzinger poderia votar em Hummes, que também tem laços familiares na Alemanha. Pensando nas fraquezas que podem obstruir a candidatura de Hummes, eu diria que sua grande limitação é a falta de irradiação carismática e isso pode ser um problema quando é preciso escolher o sucessor de um comunicador e dramatizador excelente, como foi João Paulo II.

De inquisidor a papa?

”A Igreja deveria evitar escolher qualquer dos cardeais do Império, isto é, dos EUA, da Alemanha e da França, que são os que hegemonizam a globalização. Porque se o fazem estaremos correndo o risco de que o novo papa seja refém dessas políticas globais. Também não deveria escolher nenhum dos 14 cardeais da Cúria Romana, sobre os quais pesam muitas críticas pela maneira como atuaram contra as igrejas nacionais, como a nossa ou a da Holanda”.

O veto de Leonardo Boff parece calçar como uma luva no alemão Joseph Ratzinger, que, ao mesmo tempo, é um cardeal dos países centrais e ocupa na Cúria Romana o estratégico cargo de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Algo assim como o inquisidor oficial do Vaticano.

Entre Ratzinger e Boff há um oceano de diferenças teológicas e uma história de choques pessoais.

Em 1985, logo depois que o brasileiro publicasse “Igreja, Carisma e Poder”, Ratzinger ordenou-lhe apresentar-se na “angustiante sala de 150 metros, quase completamente vazia, do Santo Oficio”, para que um de seus assessores o interrogasse, até quase fazê-lo chorar. Anos depois, o alemão voltou a exigir explicações ao brasileiro que, finalmente, decidiu deixar a instituição e “dar a batalha em outra frente”.

Ao reconstruir esses acontecimentos, Leonardo Boff afirma que Ratzinger não atirou contra ele, e sim contra a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB. “Ao me perseguir, estavam aplicando uma estratégia para disciplinar a CNBB, que era muito avançada no plano social. Em certa medida, Roma conseguiu aquilo que se propunha: a diocese de São Paulo, que nesse tempo era dirigida pelo cardeal Paulo Arms, foi dividida e, mais tarde, com a designação de Hummes como arcebispo, a Cúria Romana acabou colocando um homem menos ’problemático’ que Dom Paulo”.