- Você existe mesmo?

- Ora, não lembra o que disse o cardeal Ratzinger? "Para os fiéis cristãos, o Diabo é uma presença misteriosa, mas real, pessoal e não-simbólica".

- Talvez concorde com o último predicado.

- Por quê? - perguntou o Diabo.

- Porque símbolo, reza a etimologia da palavra grega, é o que une, agrega. O antônimo é diabolos, o que desagrega. Desculpe a minha falta de fé.

- Em mim ou no cardeal?

- Nos dois. Na ausência de uma boa dúvida cartesiana, fico com Spinoza: se você, contra a vontade de Deus, induz os seres humanos a praticar o mal, e ainda nos condena à danação eterna, que diabos de deus é esse que o deixa impune e ainda permite que sejamos punidos por você? Afinal, você é inimigo ou cúmplice de Deus?

- Não esqueça, fui criado por Deus.

- Não como demônio, mas como anjo - observei.

- Sim, agora sou um anjo decaído, pois fiz com que a primeira criatura, Adão, se voltasse contra o Criador. Adão tornou-se cativo de meu reino. Jesus teve que morrer na cruz para resgatá-lo.

- Não me venha com esse papo de Mel Gibson - reagi. - Você bem sabe que Deus tinha o poder de arrancar Adão do reino do mal sem precisar mandar o seu Filho e deixar que sofresse tanto. Qual pai se compraz com o sofrimento do filho? Jesus veio nos ensinar o amor como prática de justiça. E foi vítima da injustiça estrutural que predominava em sua época, como ainda hoje.

- Deus tentou me enganar - queixou-se o Diabo.

- Manteve em segredo o nascimento de Jesus. Mas à medida em que o Filho crescia, fui percebendo quão perfeito ele era. Quis, portanto, tê-lo ao meu lado.

- Você tentou seduzi-lo três vezes e quebrou a cara. Prometeu-lhe os reinos deste mundo, mas ele preferiu o de Deus; mandou que transformasse pedras em pães, mas ele não acedeu à primazia dos sentidos; quis vê-lo voar como os anjos, atirando-se do pináculo do Templo, mas ele optou pelas vias ordinárias, e não pelos efeitos extraordinários.

Admito que não consegui dobrá-lo aos meus caprichos. Mas desencadeei as forças do mal contra ele, até que morresse na cruz.

- Mas ele ressuscitou, venceu o mal - frisei.

- Sim, Deus me enganou.

- Como assim?

- O homem Jesus era a isca na qual Deus escondeu o anzol da divindade de Cristo. Ao perceber isso, era tarde demais.

- Por que Deus, em vez de sacrificar seu Filho na cruz, não matou você?

- Isso é um segredo entre mim e Deus.
Não posso acreditar que Deus comparta qualquer coisa com você, como as almas de seus filhos e filhas, e nem mesmo a existência. Ou acha que vou acreditar que a falta de Adão tenha sido mais grave que o assassinato do Filho do Homem na cruz?

- Eu sou a contradição de Deus - vangloriou-se o Diabo.

- Você já leu Robinson Crusoé? Lembra da "catequese" que ele tentou impingir em Sexta-Feira? Este indagou: "Se você diz que Deus é tão forte, tão grande, ele não é mais forte e mais poderoso que o Diabo?" Crusoé confirmou. Então Sexta-Feira concluiu: "Por que Deus não mata o Diabo para ele não fazer mais maldade?" Embaraçado, Crusoé fingiu que não ouviu.

- O que você responderia? - indagou o Diabo.

- Diria que Deus não pode matar o que não criou. Você é uma criação das religiões arcaicas que dividiam o mundo entre as forças do bem e do mal, o que a Bíblia rejeita, embora alguns políticos atuais queiram justificar seus ímpetos bélicos e suas ambições imperialistas na base desse dualismo.

- Mas eu figuro na Bíblia! - exaltou-se ele.

- O que não significa que de fato exista, assim como Adão e Eva também estão citados lá e nunca existiram. Adão significa "terra" e Eva, "vida". A Bíblia, como um livro em linguagem popular, antropomorfiza conceitos abstratos. Ou você acha que Elias subiu ao céu num carro de fogo e que existe o dragão citado no Apocalipse?

- Então você não crê na minha existência? Como explica tanto mal no mundo?

- Você mente tanto e tão bem que até faz a gente tender a acreditar que existe. O mal é uma decorrência da liberdade humana. Eternizar o castigo é eternizar o mal. Somos chamados a responder livremente ao amor de Deus. E onde há amor, há liberdade, inclusive de se fechar a ele.

- E no inferno, você acredita?

- Fico com Dostoievski, "o inferno é a incapacidade de não poder mais amar". Borges frisa que "é uma irreligiosidade" crer no inferno.

- Mas eu sou real - insistiu o Diabo.

- Deus não tem concorrente - rebati. - Nós inventamos você para nos eximir de nossas responsabilidades e culpas, por nem sempre corresponder ao que Deus espera de nós.