Silvia Cattori : Suíça reconheceu imediatamente a independência do Kosovo. No marco da Comissão de política exterior do Conselho dos Estados de a Confederação Helvética, da que é presidente, o senhor não era a favor de que a Suíça se precipitasse no reconhecimento do Kosovo enquanto que, por sua parte, a ministra Suíça de Assuntos Exteriores, Micheline Calmy-Rey, desde 2006, tinha afirmado claramente que o Kosovo tinha direito à independência. Este reconhecimento não senta um precedente perigoso?

Dick Marty : Nunca compreendi a posição de Calmy-Rey! Teria sido compreensível que se referisse à autonomia, a uma solução federal do jeito do modelo suíço. No marco da Comissão de política exterior, onde tínhamos que emitir nosso ditame, recebemos uma informação incompleta. O Departamento de Assuntos Exteriores nos apresentou um informe praticamente vazio: a versão do Direito Internacional, segundo a opinião do Departamento, ocupava uma página e meia. Isso é tudo. Muitos comissários não estavam bem informados. Todos os socialistas votaram pela independência do Kosovo por simples reflexo, em defesa de sua Conselheira federal.

Silvia Cattori : Então, a precipitação da Suíça neste assunto lhe surpreendeu?

Dick Marty : Não entendo que o Conselho federal não tenha esperado mais. Alguma coisa não bate. A independência do Kosovo não se decidiu em Pristina. A maioria dos países não reconheceu o Kosovo e não o reconhecerá.

Silvia Cattori : Ao reconhecer o Kosovo, pensa que a Suíça, um pequeno país neutral, se faz respeitar numa engrenagem de interesses vinculados com os objetivos estratégicos das grandes potências da OTAN?

Dick Marty : Comprovo que o Direito Internacional e a neutralidade são um pouco como o parmesão. Se põe na massa dependendo do molho com que se cozinhe. Sabemos que com alguns molhos não se põe parmesão. Se é massa com camarão, a cozinha italiana recomenda não por parmesão. Se se trata de massa à bolonhesa, o parmesão é bem-vindo. Com isto quero dizer que, cada vez mais, se invocam a neutralidade e o Direito Internacional quando interessam e se esquecem quando são incômodos.

O Direito Internacional me parece totalmente claro na questão do Kosovo, e a neutralidade também. A Resolução 1244 do Conselho de Segurança menciona, em três ocasiões, a integridade do território sérvio e diz que o Kosovo é uma província sérvia que será administrada temporariamente pela comunidade internacional. A Rússia nunca teria aceitado esta Resolução se não mencionasse a integridade do território da Sérvia. Esta Resolução segue atualmente em vigor porque unicamente o Conselho de Segurança pode modificá-la ou anulá-la.

Quando em 1999 os exércitos às ordens da OTAN bombardearam a Sérvia sem a autorização da ONU, a Suíça proibiu que os aviões da OTAN sobrevoaram seu território, porque se tratava de uma agressão ilegal. Mas nessa guerra, até na Suíça, os meios de comunicação e numerosos políticos justificaram os bombardeios dizendo que era necessário liquidar Milosevic.

Sempre opinei que havia outras formas de resolver esta questão já que, ao bombardear a Sérvia, se bombardeou a população civil e se utilizaram munições que continham urânio empobrecido. Atualmente conhecemos as conseqüências para a saúde. Falei com especialistas em oncologia. Todos coincidiram em que há um desenvolvimento anormal de tumores nessa região desde os bombardeios da OTAN. Poucas pessoas se atrevem a falar desta catástrofe. As próprias autoridades sérvias não têm interesse de falar. Isso poria a Sérvia numa posição intolerável, porque equivaleria a ter que admitir que não se pode seguir consumindo os produtos agrícolas contaminados.

Constato que os Governos não dizem a verdade aos cidadãos e que isso não é digno de uma democracia. Embora, em alguns casos, talvez a OTAN possa ter razões para intervir. Mas o que lamento são as mentiras, a falta de transparência.

Silvia Cattori : Por tanto, no caso do reconhecimento do Kosovo, há uma clara violação do Direito Internacional e da Resolução 1244 do Conselho de Segurança?

Dick Marty : Sim. No Direito Internacional, a autodeterminação dos povos está sujeita a toda uma série de condições. É necessário, em particular, que exista um povo reconhecido como tal. O que manifestamente não é o caso do Kosovo. Até agora as Nações Unidas nunca reconheceram um país que se desprendeu de outro contra a vontade do país do que fazia parte.

Por outra parte na Suíça, quando Jura quis criar um novo cantão se separando do cantão de Berna, houve toda uma série de votações. É obrigatório que as pessoas estejam de acordo e o cantão de Berna também teve que votar. Toda a Suíça teve que votar.

As autoridades sérvias aceitaram renunciar a Montenegro em 2007. Votaram no Conselho da Europa para que Montenegro fosse admitido como novo membro. Portanto não é real que os sérvios não queiram liberar ninguém; os vi votar em Estrasburgo, sem entusiasmo, mas não se opuseram. As relações entre a Sérvia e o Kosovo são diferentes que com Montenegro, que anteriormente já tinha sido uma república.

Mas nos dizem: «O Kosovo é diferente, foi vítima de abusos por parte da Sérvia». Constato que a comunidade internacional administra o Kosovo faz dez anos e que, após estes dez anos, o Kosovo tem uma economia inexistente e tornou-se um foco do crime organizado, do tráfico de drogas, de armas e de seres humanos. Constato que não há uma autêntica sociedade civil em condições de pôr em funcionamento uma verdadeira instituição democrática, e que o que ali existe são diversas minorias que vivem protegidas pelas tropas internacionais.

Durante estes anos em que o Kosovo tem estado sob o protetorado internacional foram queimados alguns mosteiros e igrejas ortodoxas diante da indiferença total dos meios de comunicação internacionais. Desde 1999, 250.000 sérvios tiveram que abandonar o Kosovo.

Não rejeitei o reconhecimento da independência; disse: esperemos para ver se se trata de verdade de um Estado independente que está em condições de proteger suas minorias. Por que não esperamos? Não entendo.

Alguém me disse: « A Suíça, com todos os problemas que já tem com Bruxelas, e os de fiscalização com a Alemanha, não deveria contradizer Bruxelas e a Alemanha, que é o país que promoveu a independência do Kosovo». Essa é uma das explicações que me deram oficiosamente.

Fica claro que nessa zona há uma fratura entre os países da OTAN e a Rússia. Se criará um bastião contra o Irã, que não está longe, mas sobre tudo contra a Rússia. Estas considerações deveriam nos ter induzido a sermos mais prudentes. Outros dizem: «Tem um 10% de albaneses do Kosovo que vivem na Suíça. Tem certos interesses especiais». Mas esse não é um argumento!

O que me choca é que tenhamos esta atitude quando a Sérvia actual não tem nada a ver com a Sérvia de Milosevic. Em janeiro de 2008, houve na Sérvia umas eleições que todos os observadores internacionais reconheceram como livres e democráticas. Os sérvios demonstraram uma madureza e um valor notáveis: elegeram o candidato pró-europeu a pesar de que não era uma eleição fácil para eles depois de 10 anos de bloqueio por parte da Europa. E o que faz a Europa, o que faz no mundo ocidental? Incitam ao Kosovo à independência logo depois dessa votação, empurrando a Sérvia para o campo russo e humilhando-a. Me parece absurdo.

A União Européia, sobre tudo, poderia ter feito uma declaração dirigida a todos os países da região e dizer-lhes: propomos a todos um contrato de associação com a União Européia e Kosovo gozará de uma ampla autonomia. O presidente sérvio, Tadic, veio ao Conselho da Europa e, embora fosse difícil para ele, declarou ante os representantes de 47 países: «Estamos de acordo com reconhecer a mais ampla autonomia possível no Kosovo». Não quisemos aproveitar essa ocasião. Não compreendo.

O que é preocupante atualmente é ver que, a pesar das enormes possibilidades que temos de informar-nos -através da Internet por exemplo-, nunca estivemos tão expostos a sermos vítimas da intoxicação. Sobre o que aconteceu nos Balcães há uma intoxicação bastante perceptível. Nos apresentaram o Exército de liberação do Kosovo (UCK) como se fosse uma organização de irmãzinhas da caridade.

Versão em português: Tali Feld Gleiser de América Latina Palavra Viva.