“Até há pouco tempo, a Semana da Pátria era marcada por desfiles militares, com cavalos e armas, assistidos pelo povo de braços cruzados, cantando o Hino Nacional e aplaudindo. Hoje ela ganhou outra conotação. Os excluídos estão nas ruas de uma forma diferente, também festiva, mas não menos incisiva em suas denúncias. Deixaram de ser cidadãos passivos para terem ação, serem protagonistas”.

Assim definiu Ari Alberti, membro da Coordenação Nacional do Grito dos Excluídos, a importância do evento que aconteceu terça-feira (7), no pátio do Santuário de Nossa Senhora Aparecida, no interior de São Paulo. No feriado nacional, cerca de 60 mil pessoas se reuniram para protestar contra a exclusão social que atinge milhões de brasileiros. O movimento, que reúne movimentos populares, pastorais sociais, sindicatos e dezenas de entidades que lutam pelo desenvolvimento de uma sociedade mais justa acontece há dez anos, sempre no Dia da Independência. Este ano, com o lema “Brasil: Mudança Pra Valer o Povo Faz Acontecer”, o Grito dos Excluídos ecoou em mais de 1800 cidades do país, reunindo cerca de um milhão de pessoas. Até o dia 22 de outubro, o ato se repetirá em outros 22 países da América Latina.

Em Aparecida, junto com o Grito, aconteceu também a 17ª Romaria dos Trabalhadores, organizada pela Pastoral Operária e pela Pastoral dos Migrantes, e mais uma Romaria a Pé, onde um grupo de 150 pessoas, pelo sétimo ano consecutivo, saiu da capital do Estado e caminhou durante sete dias até o Santuário. No percurso de 170 quilômetros, pararam em onze municípios do Vale do Paraíba e discutiram com a população local a problemática da exclusão social.

“Temos desemprego, temos gente sem terra para plantar, sem atendimento à saúde, com dificuldades na educação. Essas carências, que surgem da falta de políticas sociais, fazem com que aumente o número e a voz da exclusão no país”, diz Alberti. “O governo já provou nesses quase dois anos que, por mais que tenha boa vontade, não vai conseguir mudar essa realidade. A pressão de cima é muito forte, seja interna ou externa. Se o povo organizado não fizer pressão de baixo para cima para que as coisas mudem, nada vai acontecer. A esperança se dilui e vira frustração. É preciso organizar a esperança, politizar a esperança para que ela se torne movimento. É essa a convocação do Grito”, afirma.

O debate sobre o protagonismo da população na luta por mudanças sociais acontece num momento de refluxo dos movimentos populares. Na avaliação das lideranças, houve uma certa calmaria das organizações sociais com a eleição de Lula. Agora, ao perceberem que a política econômica é preponderante diante das reivindicações populares, tornou-se urgente reorganizar os movimentos para a luta. “O povo brasileiro é um pouco messiânico. Pensa que se votar em alguém ele vai resolver os seus problemas. Mas aí se esquece de cobrar. Não adianta eleger uma pessoa e ficar esperando que ela faça milagres. Ela só vai resolver os problemas se nós pressionarmos. O slogan do Grito foi muito pensado neste contexto político em que estamos”, explica Luis Bassegio, secretário-executivo do Grito dos Excluídos.

A idéia é fazer com que o povo fique mais “nervoso” do que o mercado financeiro. Talvez, assim, o governo se preocupe antes com as prioridades dos brasileiros do que em acalmar as autoridades do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. “Depois de um ano e meio de governo, o povo percebe que é ele o protagonista desta mudança. Não será o governo, por mais que ele esteja em disputa. Esse compromisso, nós, enquanto lutadores, temos que assumir: chamar o povo para se somar e acreditar que isso pode trazer avanços”, explica Gegê, coordenador da Central dos Movimentos Populares.

As perspectivas são animadoras. Em 1995, ano da primeira edição do Grito dos Excluídos, o evento aconteceu em 170 cidades. Dez anos depois, ele marca as comemorações do 7 de Setembro em 1800 localidades. Foi também durante a celebração do Grito que aconteceram em 2000 e 2002 dois grandes plebiscitos populares: um sobre a dívida externa, que recolheu seis milhões de assinaturas, e outro sobre a Alca, quando mais de dez milhões de pessoas votaram voluntariamente no processo.

“Acreditamos que a população está mais consciente da necessidade do seu protagonismo. Há um sentimento comum que vai se avolumando. Quando este sentimento se transformar em consciência maior e em movimento organizado, aí a mudança pode acontecer com mais facilidade. Ela não vai acontecer de uma hora para a outra. Ela é um processo”, afirma Alberti.

Voto contra a Alca

Dentro do seu papel de conscientização da população, o Grito dos Excluídos lançou este ano a campanha “Meu voto é contra a Alca, o Livre Comércio, a Dívida e a Militarização”. Até o dia das eleições - 3 de outubro -, o movimento pretende intensificar os debates em torno das negociações da Área de Livre Comércio das Américas e pautar este tema, que vem sendo ignorado pelos candidatos, no processo eleitoral. Através da distribuição de folhetos e de encontros de formação, espera-se que a população se conscientize dos efeitos da assinatura do acordo para o país.

A Campanha Jubileu, que organizou o plebiscito sobre a Alca, pede há quase dois anos uma audiência com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para dialogar sobre a realização de um plebiscito oficial sobre o assunto e acompanhar melhor o desenrolar das negociações. Os organizadores da campanha esperam que a mobilização popular colabore no agendamento da audiência.

“Esperamos que nos escutem depois das eleições”, diz Bassegio. “Se houver a reunião ministerial sobre a Alca no Brasil, vamos abandonar tudo o que estamos fazendo e cuidar só disso. Queremos sitiar os ministros, dizer que a Alca não pode sair de jeito nenhum”, conta.

Controle de capitais

Outra campanha que teve seu pontapé dado em Aparecida nesta terça-feira, por movimentos sociais e intelectuais críticos, foi a que propõe o controle, pela sociedade e pelo Estado, dos movimentos de capital realizados pelo país. Entre o pós-II Guerra e os anos 80, quase todos os países controlaram a entrada e saída de dinheiro através de suas fronteiras, política esta que, mesmo na era neoliberal, permitiu que países como a China, a Índia e a Malásia estabelecessem uma relação não-submissa com o capital internacional. No ano passado, o Brasil gastou cerca de R$150 bilhões com o pagamento de juros da dívida, valor cinco vezes superior aos investimentos feitos na área da saúde, oito vezes maior do que o empregado em educação, 47 vezes maior do que o investido em segurança pública, energia e preservação do ambiente, e 140 vezes mais do que o gasto em reforma agrária.

“O objetivo da campanha é traduzir para a população o conjunto de conseqüências que tem para o Brasil a submissão às finanças internacionais. A destinação de uma parte cada vez maior do orçamento para os juros e o descontrole da entrada e saída de recursos não permitem a construção de uma política de desenvolvimento porque não se sabe nunca com quanto se pode contar”, explica Antônio Martins, um dos coordenadores da Attac (Ação pela Tributação das Transações Especulativas em Apoio aos Cidadãos) no Brasil.

A campanha Liberdade Brasil pretende debater esta ditadura financeira à qual estamos submetidos com todos os cidadãos. Este ano, uma jornada de formação de formadores deve estimular a discussão entre os movimentos sociais. Em janeiro, durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, um seminário vai abordar as diversas iniciativas internacionais de controle das sociedades sobre os mercados financeiros. Em abril de 2005, acontece o Tribunal do Modelo Econômico, quando será lançado um Projeto de Lei de iniciativa popular que abarque um conjunto de medidas que permitam esta prática. Entre elas, estabelecer tetos máximos de pagamento dos juros da dívida e algum tipo de controle sobre o lucro dos bancos.

“Ao contrário da lei de responsabilidade fiscal, seria a lei de responsabilidade social”, diz Martins. “Precisamos mostrar que o Brasil tem força suficiente para estabelecer com os capitais internacionais uma outra relação. Não é expulsar os capitais internacionais, mas deixar claro que temos um projeto de desenvolvimento e que aqueles que quiserem participar e inclusive se beneficiar dele precisam fazer isso através de uma relação de parceria. A essência da história é interromper, dar um choque nessa história de pagar 150 bilhões de reais por ano em juros”, esclarece.