Vladimir Herzog

Os jornais da semana nos obrigaram a reviver tristes períodos da história do Brasil. As fotos chocantes de um homem que seria o jornalista Vladimir Herzog, que sofreu morte por enforcamento durante a ditadura militar, nos conduziram de volta, em cheio, a um período que gostaríamos ver banido para sempre de nossa memória.

Vlado militante, Vlado combatente, Vlado brilhante jornalista, Vlado de Clarice, Vlado amado e amante foi, como centenas de outros jovens brasileiros, ferido em seus direitos, sua dignidade, vítima indefesa da violência feroz que tomou conta do Brasil por tantos anos em delírio de caça mortal a seres humanos devido apenas a suas idéias, sua ideologia, sua posição política.

A foto inesquecível de Vladimir Herzog, ou melhor, de seu cadáver enforcado na janela da cela, com os joelhos dobrados, como que em derradeira prece, revivem com força cruel o absurdo da violência em qualquer de suas formas.

Toda violência é violação da personalidade daquele que a sofre. Toda violência é ameaça de morte. E isso porque atingir a dignidade do ser humano é já atingir sua vida. Da humilhação, da tortura ao extermínio e ao genocídio, portanto, são múltiplas as formas de violência e múltiplas as de morte.

A violência é igualmente algo irracional. Por isso, o ser humano desperta para a razão e o pensar quando toma consciência da violência como algo radicalmente contrário às exigências de sua razão. A ética, então, vai julgar a violência, identificando-a como a negação da humanidade. E vai opor-lhe uma negação categórica, recusando-lhe toda dignidade.

Muitas vezes confundida com a violência, a força seria na verdade o seu contrário. Força seria a virtude do ser humano que tem a coragem de recusar submeter-se ao império da violência. O homem forte - ao contrário do sentido comumente dado a isso - não seria aquele que possui os meios do poder e da violência, mas o que possui a sabedoria da não-violência. Aquele que possui a força é aquele que sabe resistir ao arrastar da paixão coletiva e guarda o controle de seu próprio destino. A virtude da força é o que se chama comumente a fortaleza de alma. A tradição cristã a identifica com o dom da fortaleza -um dos sete dons do Espírito Santo-, que permite enfrentar as provações e as vicissitudes da vida, mantendo-se firme no que se crê até o dom da própria existência.

Na sociedade como no mundo, a ordem resulta do jogo das forças e energias que se limitam e se equilibram umas às outras. Isso é a imagem da pureza e da verdade: o equilíbrio entre a força da gravidade e a energia da luz. Não pode, portanto, haver relações justas entre os homens senão na medida em que uns e outros sabem limitar seus desejos e não desejam se apropriar dos objetos finitos. Pois “um desejo limitado pode compor com meus outros desejos e com os desejos limitados dos outros homens”. Um desejo limitado é, pois, compatível com a força mas não com a violência.

A violência surge precisamente quando o ser humano começa a desejar o ilimitado, ou seja, perde o freio de seus próprios desejos. Ou quando seu desejo se encontra contrariado pelos outros. A violência se enraíza num desejo ilimitado que esbarra no limite constituído pelo desejo de um outro.

A justiça e a paz só podem acontecer, portanto, no momento em que os seres humanos renunciam a possuir o infinito, renunciam a desejar ilimitadamente. A injustiça resultaria então do desequilíbrio das forças pelo qual os mais fracos são oprimidos pelos mais fortes. Agir pela justiça é restabelecer o equilíbrio das forças. Mas isto só é possível exercendo, por sua vez, uma força que imponha um limite à força que introduz o desequilíbrio.

Da mesma forma, a paz mesma não resulta de duas guerras, mas de duas forças iguais e de sentido contrário que se limitam uma à outra e se mantêm em equilíbrio. Se a paz realmente existe, estas forças são apenas potencialmente violentas e podem permanecer não violentas.

A violência não é somente instrumento de opressão social ou de agressão militar. É, também, um método de ação que parece às vezes necessário, para defender a liberdade ameaçada ou para conquistá-la. A violência, com efeito, pode ser empregada a serviço de causas justas. Mas isto não a torna justa. Se ela parece necessária para combater a injustiça, não permanece menos como uma violência que machuca a humanidade do homem, tanto daquele que a sofre como daquele que a exerce.

Voltando ao episódio do fim trágico de Vladimir Herzog, é fundamental nos lembrarmos de que ele foi vítima da violência, mas não perdeu a força. A força que o fez destemido a ponto de lutar por suas idéias e arriscar-se por elas. A força que o levou à morte pelo único crime de pertencer a um partido político.

Sua morte, no entanto, transformou-se em força ainda maior ao iniciar a mobilização de uma nação adormecida e anestesiada, que na sua imensa maioria fingia -por medo ou alienação- desconhecer o que se passava nos porões do DOI-CODI. A partir da violência sofrida por Vlado, a voz destemida do então cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, levantou-se para dizer: “Nunca mais”!, sendo secundado em coro por milhares de outras vozes.

Coisa semelhante aconteceu com Jesus de Nazaré, cuja morte violenta foi o divisor de águas da história da humanidade, mostrando que o amor é mais forte do que a morte. Na esteira de Jesus, homens e mulheres deram suas vidas por esse Brasil afora por defender os oprimidos e humilhados.

Ainda que as fotos amplamente divulgadas pela imprensa brasileira nesta semana não sejam de Herzog, o importante é que reavivaram em todos nós um período terrível de nossa história, que não devemos nem podemos esquecer jamais. Que essa triste lembrança nos ajude a experimentar simultaneamente a força que não mata, mas ao mesmo tempo em que perdoa e resgata, sabe gritar indignada: “Nunca mais!”