Carlos Lessa

O "Agradecimento ao apoio popular" elogia Lula e ao discursar o homenageado lembrou que Guido Mantega, seu sucessor no banco, "não é o anti-Lessa". Mas o texto aponta "uma manobra astuciosa da elite para frustrar os sonhos populares". Em outra dimensão, mais profunda, é uma proclamação ideológica do "neonacionalismo" e do "neopopulismo", neologismos que Lessa forjou e assume com uma ponta de ironia. E é uma arrebatada declaração de amor ao povo brasileiro. Merece ser lembrada como um dos documentos marcantes desta quadra da história do país. Veja a íntegra: "Agradecimento ao apoio popular"

"Estou muito comovido pelo apoio diversificado que venho recebendo. Organizações populares, partidos políticos, velhos amigos, intelectuais que respeito, artistas brasileiros que admiro. Apoio de pessoas que não conheço pessoalmente, em todos cantos deste imenso país".

Tenho que esclarecer as razões pelas quais deixei a reitoria da minha universidade, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo sido eleito por 85% dos votos dos meus companheiros, para ser presidente do BNDES. Eu sou e me sinto muito bem como professor, retorno na próxima semana para as minhas funções como professor. Jamais aspirei ser banqueiro. Porém aceitei a missão, convocado pelo presidente Lula.

Aceitei porque, em primeiro lugar, o convite vinha de Lula, que para mim é um símbolo vigoroso da criatividade, da resistência e da mobilidade social do povo brasileiro. Fiquei emocionado ao ouvir Lula dizer, ao ser diplomado presidente da República, que aquele havia sido o primeiro diploma de sua vida e explicar que não tem certeza da data do seu nascimento, o que exemplifica como a pobreza retira direitos fundamentais do povo brasileiro. Aceitei a convocação porque o presidente me deu apoio para compor uma diretoria integrada por profissionais do BNDES e do Banco Central, todos bons professores. Aceitei a convocação do presidente para uma função estratégica, que ele assim anunciou: dirigir o Banco dos sonhos dos brasileiros.

Interpretei o convite para ser parceiro de um projeto de desenvolvimento nacional com inclusão social. Cooperar com esse sonho me levou a ser um homem da situação, o que mudava minha trajetória de vida, na qual estive sempre na oposição ao sistema que oprime o povo brasileiro. Antes, estive na situação apenas em um breve período no governo de João Goulart, o que mais tarde deu origem ao meu exílio. No outro único momento em que estive na situação foi quando aceitei o convite de Ulysses Guimarães para ser diretor do Fim Social.

Ao longo da minha vida sedimentei uma convicção importante. Considero a soberania e a robustez da nação pré-condição fundamental para a solução do problema social. Para mim isto impõe o primado dos interesses nacionais sobre os demais interesses.

Sou da geração que viu a Segunda Guerra Mundial. Vi a bomba. Vi milhões de pessoas serem exterminadas por razões religiosas, geopolíticas, razões estúpidas diante do valor da vida humana. Sonhei com a Carta dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana, proclamada pela ONU. Acreditei que, se a humanidade afastasse o fantasma da guerra, seria possível dar a todos os habitantes do planeta condições básicas de uma vida digna:educação, saúde, habitação e lazer.

Sou de uma antiga família da elite brasileira carioca. Convivi na minha juventude com amigos das favelas do meu bairro. Jogavam futebol muito melhor do que eu e sabiam muito mais de como lidar com as moças. Eu sabia que não tinham muito dinheiro, mas não percebia a distância social que nos separava.

Vim percebê-la fora do Rio de Janeiro, quando jovem fui trabalhar para Miguel Arraes no Plano diretor de Recife. Conheci as favelas do Pina e de Boa Viagem. Foi para mim um choque brutal. Como era possível que outros, a elite brasileira, concordassem com as condições trágicas de vida daquelas pessoas? A partir desse momento, recortei em minha cabeça dois grupos: as elites insensíveis e o povo sacrificado e abandonado deste país.

De conservador virei um revoltado. E me perguntei: o que fazer para, usando a linguagem do saudoso Teotônio Vilela, resgatar a dívida social? A formação de economista me deu pistas teóricas e informações práticas que me fizeram acreditar ser possível um sonho, o desenvolvimento nacional com inclusão social. Em resumo, uma civilização brasileira.

Percebi elites de vários formatos, identifiquei as contra-elites e fiquei cada vez mais fascinado pelo povão brasileiro. Uma pergunta sempre me perseguiu. Como conseguiram sobreviver com tão pouco e com elites tão descomprometidas com o sonho civilizatório?

Aos poucos fui conhecendo em profundidade o povo brasileiro. Um povo extremamente criativo em arte de sobrevivência. Percebi com clareza como este povo criou a favela, organizou o lugar, resolveu o problema de urbanismo e de arquitetura, criou códigos de conduta e desenvolveu uma solidariedade básica: a comunidade, inventada pelo povo para sobreviver.

Descobri um povo maravilhoso no campo. O caipira que constrói a riqueza nacional a partir da fertilidade da terra, vivendo em pequenas propriedades, em condições ultraprecárias. Percebi a imensa contribuição dessa gente para ocupação real do território brasileiro.

Olhei de perto os imigrantes europeus, asiáticos e do Oriente Médio. Vi seus filhos fazerem avançar a cidadania e contribuírem de mil formas para o caldeirão brasileiro. O caldeirão do povo brasileiro.

Vi o imigrante português dando sempre uma contribuição decisiva. Vi os afro-brasileiros, descendentes de escravos para os quais a elite brasileira nada fez. Vi os caboclos amazônicos criando uma forma adaptativa única e garantindo para a Nação a ocupação de um imenso pedaço deste país.

Em resumo, vi um povo resistente, criativo e, para a minha maior surpresa, espantosamente alegre. Tenho pelo povo brasileiro a confiança de que nele está a possibilidade de uma contribuição original para a civilização mundial, porque:

  1. Não somos arrogantes. Deixamos o recém-chegado ao país à vontade para empreender, para conhecer nossos defeitos e nossas qualidades.
  2. Assimilamos qualquer coisa que venha de fora e a impregnamos de brasilidade.
  3. Sabemos dar importância à cooperação, pois o povo aprendeu que não pode sobreviver sem a solidariedade.
  4. Praticamente não temos preconceitos raciais, religiosos etc.
  5. Gostamos de tudo o que é misturado. Música, comida a quilo, feijoada com sushi, X-tudo...

Em contraponto, tornei-me um historiador econômico para conhecer melhor o papel da elite nacional que:

  1. Fez a independência, mas manteve a escravidão.
  2. Que depois aboliu a escravidão da maneira mais canalha possível, sem reforma agrária, sem escola pública, sem direitos trabalhistas.
  3. Que criou uma República que na prática manteve as oligarquias no comando e o povo sob controle.
  4. Que criou o clientelismo, transformando o que deveria ser direito em favor.
  5. Que sempre procurou afastar qualquer contra-elite e, quando alguma teve sucesso, foi capaz de levar ao suicídio o presidente Getúlio Vargas.
  6. Que adotou, entusiasticamente e operacionalmente, o rótulo comunista para ser aplicado a quem quisesse contrariar.
  7. Que deu suporte ao regime autoritário enquanto este lhe serviu.
  8. Que passou a ser democrática por conveniência.
  9. Que tenta fazer que o povo ache o político um ser essencialmente corrupto, inútil e astuto.
  10. Que, sob o rótulo autoritário ou democrata, usa o Estado de forma desbragada e despudorada a favor de seus interesses.

Conheço nossas contra-elites. Tenho o maior respeito pelas suas intenções e pelos seus esforços, porém suspeito que não percebem coisas básicas do povo brasileiro. Esse povo é heterogêneo, não é classificável pelo corte clássico burguês/proletário, ou pela categoria terrivelmente abstrata e a-histórica, de trabalhador. Não percebem que o povo está criando por movimentos, por novas formas, por novas regras, uma sociedade que poderá vir a ser realmente inclusiva.

A nossa contra-elite não gosta muito de aprender com o povo. Se gostasse, respeitaria a mãe crecheira, a nova confissão religiosa, a relação com a birosca, o sistema do aprendiz etc.

Sou neopopulista. Amo o povo brasileiro e acho que a história fez dele um ente amoroso, capaz de criar uma civilização afetuosa e alegre. Não há nada mais civilizado que ver o povo criar uma festa de passagem de ano na orla de Copacabana, com quase dois milhões de pessoas festejando em completa harmonia e, insistentemente, acreditando num futuro melhor. Não há nada mais civilizado do que ver o povo que celebra festas como a de Parintins ou a de Barretos, verdadeiros rituais que renovam a crença de que este pode ser um país melhor para os brasileiros.

Sou neonacionalista. Não há solidariedade internacional. A regra do mundo é quem pariu Matheus que o embale. Por isso precisamos ter sob controle e em produção nacional vacinas, remédios, sementes, estoques de alimento, equipamentos para que as Forças Armadas possam realmente garantir que a Amazônia continue sendo de nossos filhos e netos.

Nossas elites querem desfrutar do padrão de vida de Nova York ou de Miami e ter mão-de-obra doméstica ultrabarata. Querem colocar no exterior uma boa parte da riqueza que aqui construíram. Querem continuar a ganhar o máximo possível aqui e ter sempre aberta a possibilidade de se converterem em seres internacionais, sem nenhuma responsabilidade pelo que acontece no Brasil.

Ao nosso povo, corresponde o desafio de preservar a nacionalidade. E este povo está construindo a Nação Brasileira, consolidando a nossa oportunidade de firmar uma alternativa de civilização.