O fim do papado de João Paulo II coloca agora um grande desafio para a Igreja Católica: no início do século XXI, ela enfrenta um processo de perda de credibilidade, especialmente na Europa e na América Latina, por suas posições conservadoras em temas como a participação das mulheres no sacerdócio, o celibato dos padres, a sexualidade e o combate à Aids.

No entanto, segundo especulações feitas pela imprensa italiana e por especialistas sobre os bastidores do poder no Vaticano, a tendência é que o sucessor de João Paulo II seja um papa conservador, provavelmente italiano. Historicamente avessa a mudanças bruscas, a Santa Sé procura um novo líder capaz de manter sua linha doutrinária e, ao mesmo tempo, adaptar-se a um mundo completamente diferente daquele que marcou o início do papado que termina agora.

Esse pontificado foi marcado por uma política externa ofensiva, particularmente no final dos anos 80, quando trabalhou, ao lado dos Estados Unidos, para acelerar o processo de desintegração da União Soviética e dos regimes socialistas na leste europeu. Além de ser guardião dos dogmas espirituais e doutrinários da igreja Católica, João Paulo II fez política como poucos de seus antecessores. Ficou conhecido como “papa peregrino” por suas inúmeras viagens a países de todos os continentes.

João Paulo II fez 104 viagens ao exterior, visitando 129 países. Nos últimos anos, adotou uma posição crítica em relação às intervenções militares norte-americanas e aos efeitos negativos da globalização financeira. No plano interno, notabilizou-se por suas posições conservadoras em questões doutrinárias e em temas como homossexualismo, sexo dentro e fora do casamento, métodos anti-concepcionais, participação de religiosos na vida política e estrutura de poder da igreja. Também ficou conhecido como um “fabricante de santos”. Durante seu papado proclamou 482 santos e nomeou 232 cardeais.

A herança de João Paulo II

As opiniões sobre a herança do papado de João Paulo II são contraditórias e polêmicas. Em um artigo publicado recentemente, Frei Betto afirmou que o pontificado de João Paulo II “marcou a presença da Igreja Católica em duas esferas de decisão: na mídia e na política internacional, influindo no conflito entre árabes e israelenses, na contenda entre Chile e Argentina pelo Canal de Beagle, na derrubada do bloco socialista no Leste europeu e na crítica ao modelo neoliberal de globalização”.

Para Frei Betto, “um dos méritos menos conhecidos de João Paulo II é o seu apoio intransigente às causas sociais”, que apareceria em inúmeros pronunciamentos e encíclicas “em favor da reforma agrária, da liberdade sindical e de uma economia centrada nos direitos da maioria”. O papa, acrescentou o escritor brasileiro, tinha um “coração de esquerda e uma cabeça de direita”, caracterizando-se por ser “sensível ao drama dos pobres e intransigente nas questões doutrinárias”, vetando qualquer debate sobre o acesso das mulheres ao sacerdócio e sobe o fim do celibato obrigatório para os padres.

Adotando um tom mais crítico, o teólogo católico alemão, Hans Küng, em um longo ensaio publicado pelo semanário alemão Der Spiegel, qualificou o papado de João Paulo II como “um retrocesso histórico para a Igreja Católica”. Segundo Küng, se, por um lado, João Paulo II esteve envolvido ativamente na luta contra as guerras, a repressão e as ameaças aos direitos humanos, por outro, “sua gestão anti-reformista mergulhou a Igreja Apostólica Romana numa profunda crise de credibilidade”.

Na avaliação do teólogo, que em 1979 teve seu título episcopal cassado pelo Vaticano por suas posições críticas à estrutura de poder da Santa Sé, a Igreja Católica encontra-se diante de um dilema terrível: “muitas pessoas estão confrontadas a uma combinação impossível de alternativas; ou você aceita as regras do jogo ou deixa a Igreja”. “Uma nova esperança só poderá começar a brotar quando os membros da Igreja que atuam em Roma e no quadro do episcopado se reorientarem em função da bússola dos Evangelhos”, acrescentou.

Reconhecendo os talentos e as virtudes de João Paulo II, Küng chamou a atenção para muitas decisões equivocadas de seus episcopado, que teriam afastado muitas pessoas da Igreja Católica. Um exemplo disso seriam as posições papais sobre a sexualidade.

O teólogo alemão é duro neste ponto. Lembrando o pronunciamento de João Paulo II, em 1994, na Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, condenando o uso da pílula e de preservativos, Kung diz: “o resultado disso é que o papa, mais que qualquer outro homem de Estado, pode ser tido como em parte responsável pelo aumento desenfreado da população que tem sido registrado em certos países, e pelo alastramento da Aids na África”. Além disso, o teólogo observou que “até mesmo em países tradicionalmente católicos tais como a Irlanda, a Espanha e Portugal, a rigorosa moral sexual preconizada pelo papa e pela Igreja Católica Romana tem sido aberta ou tacitamente rejeitada”.

O processo sucessório

O processo sucessório no Vaticano ocorre em um momento onde a Igreja Católica enfrenta um quadro de estagnação na Europa e de perda de prestígio, particularmente na América Latina, onde enfrenta o crescimento de igrejas evangélicas e pentecostais. Segundo dados do Vaticano, a Igreja Católica Apostólica Romana contabiliza hoje mais de 1 bilhão de fiéis no mundo, cerca de 17% da população mundial.

Quando João Paulo II assumiu o Vaticano, em 1978, esse número andava por volta de 749 milhões de fiéis. Cerca de 49,8% dos seguidores da Igreja Católica estão na América Latina. Em seguida vem a Europa com 25,8%, a África com 13,2%, a Ásia com 10,4% e a Oceania com apenas 0,8% de católicos. Atualmente, o catolicismo registra sua maior taxa de expansão na África, com 4,5% de fiéis a mais por ano.

Segundo especulações da imprensa italiana, há duas tendências fortes no processo sucessório: a escolha de um papa italiano ou então de um latino-americano (neste caso, uma tentativa de deter o crescimento acelerado do pentecostalismo da América Latina). Entre os cardeais italianos apontados como favoritos, destacam-se: Ângelo Sodano (secretário de Estado do Vaticano, 77 anos), Dionigi Tettamanzi (Milão), Ângelo Scola (Veneza) e Tarcisio Bertone (Gênova).

Entre os latino-americanos, fala-se nos nomes do cardeal colombiano Darío Castrillón Buracos (75 anos), do hondurenho Oscar Andrés Rodríguez Madariaga (62 anos), do argentino Jorge Mario Bergoglio (67 anos), e do brasileiro Cláudio Hummes (arcebispo de São Paulo, 70 anos). Como zebra, surge o nome do cardeal nigeriano Francis Arinze, 72 anos, que seria o primeiro papa negro da história.

O colégio eleitoral de cardeais

A escolha do novo papa será feita pelos integrantes do Colégio de Cardeais. Têm direito a voto todos os cardeais com menos de 80 anos. São 117 atualmente, quatro brasileiros, que, em tese, podem votar e ser votados. A distribuição regional do Colégio de Cardeais é a seguinte: 58 europeus (20 italianos), 21 latino-americanos, 14 norte-americanos, 11 africanos, 11 asiáticos e dois da Oceania.

Confirmada a morte do papa, o Sagrado Colégio de Cardeais notifica oficialmente seus colegas, convocando um conclave que deve começar dentro de no máximo 20 dias após o falecimento. Durante o conclave, os cardeais permanecem em uma sala fechada a chave pelo lado de fora. Para ser eleito, o novo papa precisa ter pelo menos dois terços dos votos. Se não houver um eleito após 12 ou 13 dias, os cardeais podem decidir, por voto majoritário (50% mais um dos votos), quem será o novo ocupante do “trono de Pedro”.

Os oito cardeais brasileiros viajarão a Roma para participar das cerimônias fúnebres do Papa João Paulo II. São eles: dom Aloísio Lorscheider, arcebispo emérito de Aparecida (SP); dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo; dom Serafim Fernandes de Araújo, arcebispo de Belo Horizonte; dom José Freire Falcão, arcebispo de Brasília; dom Cláudio Hummes, arcebispo metropolitano de São Paulo; dom Eugênio de Araújo Sales, arcebispo emérito do Rio de Janeiro; dom Geraldo Majella Agnelo, arcebispo de Salvador (BA); e dom Eusébio Oscar Scheid, arcebispo do Rio de Janeiro. Destes, apenas quatro têm direito a votar no conclave, a assembléia mundial de cardeais que elegerá o novo papa. Os membros brasileiros do colégio eleitoral dos cardeais são José Freire Falcão, Cláudio Hummes, Geraldo Majella Agnelo e Eusébio Oscar Scheid.

Dom Cláudio Hummes aparece na lista dos “papáveis”, mas segundo os especialistas na política interna do Vaticano, tem poucas chances. Mas a escolha de um papa é sempre cheia de surpresas, advertem. O que é certo é que, nas próximas semanas, a Igreja Católica estará debruçada sobre seu presente e seu futuro em uma sala trancada à chave no Vaticano.

Com agências internacionais