Liderada pela jornalista Sandra Cohen, a editoria da área de internacional do jornal O Globo detectou e publicou a ação de dois pretensos recrutadores de mercenários no Brasil. Ambos, de nacionalidade alemã, agiam em São Paulo e Goiás recrutando ex-militares, policiais e civis brasileiros com oferta de grandes salários, para atuarem como “segurança” no Iraque. A tentativa feita pelos jornalistas de chegarem aos mandantes do recrutamento - uma misteriosa empresa chamada Inveco, sediada na Flórida -, porém, não deu resultado.

Os dois alemães supostamente envolvidos no recrutamento no Brasil - Heiko Seibold e Frank Salewski - divulgaram, frente aos escândalo, uma nota pública negando qualquer envolvimento no esquema. Ao mesmo tempo, recusaram todo envolvimento no recrutamento de homens para lutar no Iraque, afirmando “temerem” ataques de “fundamentalistas internacionais” contra suas famílias. Por isso, decidiram pedir proteção à Embaixada da Alemanha no Brasil. Também negaram vínculo empregatício com a Inveco e disseram estar apenas prestando um favor ao consultarem profissionais brasileiros sobre a possibilidade de irem trabalhar no exterior. Não se manifestaram, contudo, sobre o impacto que tal ação de recrutamento poderia ter nas negociações em curso para libertação de um brasileiro seqüestrado naquele país.

Se, para os brasileiros, convites desse tipo são novidade, neste momento já há grande número de chilenos, colombianos, salvadorenhos e cubanos da Flórida no Iraque. Ao lado destes, há europeus orientais, turcos, nepaleses, indonésios e outros, formando um contingente de 20 mil homens, o que faz dos mercenários ocidentais o segundo exército no teatro de operações (logo depois do contingente dos EUA e na frente do contingente britânico. Tal investimento maciço em mercenários é uma das novas tendências da “guerra moderna” dos ideólogos neoconservadores americanos, já esboçada na Administração Clinton e que ganhou imensa força sob George Bush.

Trata-se, no caso, de resolver duas grandes preocupações: de um lado, o impacto sobre a opinião pública americana, da morte de seus homens; de outro lado, tentar rebaixar os custos financeiros da guerra. Sabemos, desde a Guerra do Vietnã (1964-1975), que os Estados Unidos são altamente refratários a uma elevada “contagem de corpos”. E em guerras não nacionais, em cenários distantes e com motivação duvidosa, após uma chegada maciça de mortos, a opinião pública tende a rejeitar a participação no conflito. Foi isso que se denominou de “Síndrome do Vietnã”.

Assim, durante um bom tempo, as forças armadas americanas preferiram engajamentos de tempo determinado, ações aéreas sem ocupação de território e expedições punitivas com mísseis enquanto forma básica de guerra. Tratava-se do que método desenvolvido por Colin Powell: “(...) nós atiramos, e eles morrem!”, enquanto modelo de guerra perfeita (também chamada de norma da “Zero Morte”). Além disso, um soldado americano, em média, custa cerca de US$ 4 milhões ao governo americano. Ora, nepaleses, bengalis ou latino-americanos sairiam bem mais baratos e suas mortes não causariam qualquer impacto na opinião pública americana.

A ponta do iceberg

A descoberta de uma rede ilegal de contratação de mercenários no Brasil - ilegal, uma vez que não possui registros exigidos e viola as leis trabalhistas nacionais - surge como um inconveniente para a política externa do país, pautada pela condenação da intervenção americana - sem aval da ONU - no Iraque e a busca de uma nova relação global com o Mundo Árabe (expressa na visita de Lula ao Oriente Médio em 2004). Sua revelação, no exato momento em que a política externa brasileira assume um papel de liderança regional com projeção global, é, no mínimo, curiosa.

A possibilidade de morte, seqüestro ou mesmo de emprego da força por parte de brasileiros numa região de alta tensão política e militar obrigaria a uma intervenção do governo brasileiro em defesa ou proteção de nossos compatriotas, colocando o país numa situação de coligado com as tropas de ocupação, mesmo que involuntariamente. Da mesma forma, a revelação da presença - absolutamente casual e sem qualquer missão oficial - de um brasileiro em um navio americano durante os combates iniciais no Iraque tendem a criar constrangimentos para o país.

Num mundo cada vez mais complexo, teríamos “combatentes” brasileiros numa guerra condenada pelo país (discurso de Lula em abril de 2003). Para os planos do Itamaraty de ofensiva comercial e política (relacionada com a reforma da ONU) na região, a presença dos mercenários pode ser, simplesmente, desastrosa ao associar o país - em especial em face da montante oposição islâmica na região - com a ação de homens de armas sob comando dos ocupantes.

“The Iraq Dreams”

Imediatamente antes da invasão do país, em abril de 2003, e desde então em grande escala, empresas americanas viram-se diante de um imaginário El Dorado de negócios fáceis e bilionários. Algumas tiveram acesso imediato a tais negócios através dos contratos com o Pentágono, a maioria sem licitação. Foram favorecidas companhias ligadas ao vice-presidente Dick Cheney e a Richard Perle, então conselheiro político do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld.

Tanto Perle quanto Cheney mobilizaram de imediato uma vasta rede de empresas, com um amplo buquê de subsidiárias, vinculadas ao conglomerado Hallyburton, sediado no Texas, base política do presidente George W. Bush. Os negócios de Perle - homem de confiança do Likud, de Ariel Sharon - tornaram-se tão escandalosos ainda durante os combates de abril de 2003 que levaram a seu afastamento do Pentágono, embora mantenha sua ação de lobista.

As relações entre Cheney e a Hallyburton, de um lado, e os negócios no Iraque, tornaram-se um tema recorrente da campanha eleitoral do senador John Kerry, em 2004, e estão largamente documentados. O poderoso Paul Wolfowitz, agora indicado para a presidência do Banco Mundial, declararia: “A invasão se financiará em curto prazo!”.

Ante o grande número de escândalos e manipulações financeiras, o Congresso americano nomeou Stuart Bowen como inspetor especial para investigar os casos de corrupção com os fundos americanos aplicados no Iraque. Com auxílio do FBI, estão em curso cerca de 134 investigações de corrupção ou de malversação de fundos no Iraque.

Assim, campo de negócios, de grandes lucros com a guerra mostrou-se decepcionante: a reconstrução do Iraque. Este seria o filão principal. Obras de restauração e renovação da planta petrolífera, das usinas, estradas, escolas e hospitais, além do setor sanitário, deveriam render contratos bilionários, todos honrados pela imensa capacidade de produção energética do Iraque, que voltaria ao mercado em grande estilo.

Além disso, o próprio fornecimento às tropas ocupantes - de combustível até a construção de barracks - deveria render um rápido enriquecimento às empresas envolvidas. Visando estabelecer com clareza os limites do “negócio do século”, o Departamento de Defesa dos EUA publicou uma lista de países que seriam admitidas ao clube da reconstrução do Iraque. Assim, todos os países já presentes no Iraque - França, Rússia, China, Brasil - bem como os que condenaram o unilateralismo americano (em regra, os mesmos) ficariam barrados na porta do baile.

Contudo, a multiforme resistência iraquiana - mais de trinta atores diferentes em ação - contrariaram fortemente os planos da “reconstrução”do Iraque. Não só atingiram duramente a extração, refino e exportação do petróleo, diminuindo os recursos disponíveis, como desencadearam uma brutal ação de terror contra estrangeiros presentes no país.

O mote da ação deveria centrar-se na idéia de: “o Iraque não vale o risco!” Assim, a brutalidade da ação - marcada pelas cruéis cerimônias de “degola” televisivas de estrangeiros - acabou levando várias empresas a abdicar de uma presença no país. Assim, a continuidade da ação, em especial daquelas de caráter civil - como obras públicas contratados pelo governo provisório - necessitaram desde logo de forte esquema de segurança.

Privatizando a guerra

Ora, a política oficial de Bush/Rumsfeld para o Iraque foi a de diminuir ao máximo a presença física - o manpower - no local, eliminando a possibilidade de repetição da “Síndrome do Vietnã”. Assim, a “privatização da guerra” tornou-se, desde o início do conflito, um objetivo do governo americano. Trazer mercenários de todo o mundo, em especial para o desgastante e massivo serviço de segurança - homens parados, fardados e com proteção ineficaz -, caracterizou o procedimento americano na guerra. Mas, ao mesmo tempo, não seria possível ao governo americano alistar mercenários para a segurança de empresas privadas.

Assim, caberia às próprias companhias cuidar do alistamento de recursos humanos para sua segurança. É claro que o alistamento de americanos - em parte realizado para a Guerra no Afeganistão desde 2001 - também resultaria em baixas americanas, com impacto negativo sobre a opinião pública. Assim, o alistamento de mercenários em países terceiros, cuja morte ou cativeiro não geraria mal-estar doméstico - além da diminuição dos custos -, tornou-se uma ação corrente das empresas americanas atuando no Iraque.
Havia um precedente: o alistamento de mercenários centro-americanos e colombianos, sob a chefia de reservistas das forças especiais americanas, na Colômbia.

Foi a partir daí, utilizando-se de fontes locais envolvidas nos procedimentos de alistamento, que os jornais El Tiempo e La Republica, de Bogotá, localizaram e identificaram, em dezembro de 2004, empresas americanas com interesses no Iraque, como os mandantes do alistamento de latino-americanos como mercenários. No dia 20 do mesmo mês, Niko Schvarz publicava no sítio eletrônico “Dossiers/Investigaciones” o relato da ação da empresa Hallyburton como a grande alistadora de mercenários, visando a defesa de seus interesses corporativos no país.

A Hallyburton e sua constelação de associadas desempenhou um papel central no deslanchar da guerra e nos planos de reconstrução do Iraque. Suas vinculações com Dick Cheney abriram as principais portas do Iraque ocupado. Cheney foi secretário de Defesa de George Bush, pai, possui uma longa experiência em política externa e profundos laços com a indústria do petróleo do Texas. Foi através da indústria texana que Cheney desenvolveu múltiplos contatos com as grandes empresas e as famílias vinculadas à exploração do petróleo árabe, em especial nos países ditos moderados como Arábia Saudita (na realidade, ditaduras não visadas pelo presidente Bush).

Cheney é ex-vice-presidente da Hallyburton Company, que atua nos mais variados setores de serviços petrolíferos; é membro do conselho diretor da Landmark Graphics Corporation, que produz programas de computador para a prospecção petrolífera; atua ainda na Numar Corp., outra empresa de prospecção; é conselheiro da Dresser Company, especializada no uso de ressonância magnética na busca de jazimentos de petróleo, além de ter participação na instalação e gerência de oleodutos do Azerbaijão, provenientes do Mar Cáspio.

Por fim, possui interesses na (Kellog) Brown & Roots, subsidiária da Hallyburton, responsável pela construção dos alojamentos americanos e plantas civis na Bósnia, Kossovo e no Golfo Pérsico, sendo a principal beneficiaria dos contratos do Pentágono no Iraque. Só neste país, a (K) B&R conseguiu contratos de US$ 2,2 bilhões, sem qualquer forma de concorrência.

A escolha privilegiada da empresa baseou-se na sua expertise, desenvolvida desde sua participação (em nome da Hallyburton) no suporte das tropas americanas no Vietnã, Bósnia e Kossovo. A empresa foi, ainda, a escolhida pelo Pentágono para a ampliação e manutenção da prisão de Guantánamo, em Cuba, num contrato de US$ 16 milhões.

Hallyburton, (Kellog) Brow&Roots e o trabalho mercenário
Assim, para Hallyburton, o alistamento de mercenários é um meio básico para garantir a segurança dos seus interesses corporativos. Ao mesmo tempo envolta em denúncias de favorecimento nos EUA e fustigada pela resistência iraquiana, a empresa voltou-se para o uso massivo de mercenários. Não se trata, contudo, da contratação exclusiva de “pessoal de segurança”.

Dado o elevado grau de violência vigente no Iraque, um grande número de trabalhadores não-qualificados ou semi-qualificados (para serviços de cozinha, limpeza e transporte) passaram a ser alistados em países terceiros, em especial países muito pobres.

Um americano exigiria um salário bastante elevado para arriscar seu pescoço na região. Desta forma, empresas subsidiárias contratavam empreiteiras, que contratam “gatos”, que enviam agentes - a “rede de fantasmas” - que alistavam homens em países onde salários pagos em dólar teriam uma força irresistível. Um exemplo: a própria Hallyburton incorporou trabalhadores vindos do Sul da Ásia (Bangladesh, Sri Lanka, Índia e Filipinas) através de uma empresa denominada Tamini Corporation, em Riad, na Arábia Saudita. Contudo, os trabalhadores eram enviados de seus países de origem para o Kwait, onde recebiam rápidas instruções e eram, então, despachados para as zonas quentes do Iraque. Salários? US$ 100 por mês!

Na América Latina a ação dos recrutadores - seguindo os moldes da “conexão asiática” da Hallyburton - concentrou-se na Colômbia, Chile, El Salvador, além da Flórida. Em tais países - este é o dado comum que une o chileno John Rivas, o salvadorenho Juan Nerio e o colombiano Augusto Iturbe - existiu uma antiga ação americana de treinamento de militares, paramilitares e policiais para enfrentar a insurgência e a oposição locais. Muitos destes homens, como na Colômbia e América Central, já tiveram seu “batismo de fogo” nas lutas internas latino-americanas, mostrando-se melhor preparados que os “novatos” americanos.

A “Triple Canopy” entra em ação

Assim, foram contratados ex-policiais e militares da reserva colombianos, com salários de US$ 7 mil, e três meses de férias na Europa. A maioria era membro das forças paramilitares de extrema-direita colombiana, acusados de ações terroristas - as Autodefesas Colombianas. A contratação de tais mercenários foi mediada pelas filiais latino-americanas da Hallyburton, que por sua vez repassaram a tarefa para prestadores de serviços, iniciando uma verdadeira “rede de fantasmas”.

Fontes confiáveis em El Salvador e na Flórida - feudo da família Bush e onde a secretária de Justiça foi coordenadora da campanha eleitoral de Bush -, e onde, ainda, a Hallyburton agiu amplamente no alistamento de mercenários latinos mesmo sem realizar os registros legais, confirmaram a ação da empresa e de suas prestadores de serviços.

Em El Salvador, a empresa Triple Canopy - especializada no alistamento de mercenários para a proteção de interesses corporativos - já alistou e enviou ao Iraque 150 homens, por US$ 3 mil por mês - e sem férias européias desta feita! - tudo sob beneplácito do governo salvadorenho, envolvido na briga pela presidência da Organização dos Estados Americanas (OEA). O objetivo seria reunir até 30 mil homens, não norte-americanos, disponíveis como tropa auxiliar para o Iraque.

Mas não é apenas a Triple Canopy. Um enxame de empresas de segurança pousou sobre o Iraque. Algumas viviam na sombra, herdeiras do neocolonialismo atuante na África Negra e sediadas na África do Sul, Bélgica e Inglaterra. Outras formaram-se rapidamente para dar conta das exigências da Doutrina Rumsfeld (a “privatização da guerra”).

As principais empresas contratantes especializadas em “segurança e planejamento operacional”, como se autodenominam, são a Caci International, a TitanCorp e a BlackWater Security Consulting, além, é claro, da Triple Canopy. As duas primeiras empresas receberam a incumbência de gerir a famosa prisão de Abu Graib, próximo a Bagdá, além de realizar os “interrogatórios” prévios dos “suspeitos” iraquianos. Para isso a Caci recebeu US$ 226 milhões, enquanto a TitanCorp, US$ 400 milhões. As conseqüências dolorosas da gestão da prisão de Abu Graib são, hoje, bastante conhecidas.

Vácuo jurídico

A ação de tais empresas se dá em verdadeiro vácuo jurídico. Tecnicamente, deveriam estar sob a jurisdição da Convenção de Genebra, de 1949. Neste caso, indivíduos que não portem armas e não estejam empregados na defesa de instalações militares (cozinheiros, motoristas etc.) não poderiam ser alvo de ações militares - fato, por sua vez, solenemente ignorado pela resistência iraquiana.

Contudo, no caso específico dos mercenários, são ex-militares, ou com treino militar, portando armas e, muitas vezes, atuando em instalações militares. Evidentemente, isso implica no envolvimento direto no conflito. Como em Abu Graib, muitos destes mercenários cometeram atentados contra os direitos humanos ou foram vitimados em seus próprios direitos humanos pelas condições em que foram levados a envolverem-se na guerra.

Qual a instância jurídica competente? O país de alistamento? O país sede do contratante? O país hospedeiro? Bem, através de uma série de “interpretações” legais, inclusive das Convenções de Genebra, o atual secretário de Justiça dos EUA criou um “limbo” jurídico impenetrável. O “U.S Military Field Manual”, em vigor, estabelece literalmente: “(...) a manutenção da disciplina de contratados é de responsabilidade da estrutura empresarial contratante, não da cadeia de comando militar”.

Ora, o contratante se esconde em meio a sua rede de fantasmas. Além disso, através da Ordem Executiva 13303, assinada pelo presidente Bush, em 22 de maio de 2003, as empresas de exploração de petróleo americanas no Iraque (bem como suas associadas) eram declaradas “imunes” aos procedimentos jurídicos oriundos de instituições iraquianas e de instâncias internacionais por atos praticados “em sua defesa” no Iraque.

No dia-a-dia da guerra no Iraque, a ação dos mercenários contratados tem sido, no mínimo, decepcionante para os ideólogos da privatização da guerra. Em casos sucessivos, a segurança acompanhante tem sido incapaz de entender a “antropologia local”, comportando-se de forma arrogante, desafiante e gerando forte reação contrária. Em outros casos, simplesmente abandonam seus postos ou fogem miseravelmente frente ao fogo inimigo. É extremamente difícil manter a disciplina e o espírito de luta de homens voltados para a guerra enquanto forma de enriquecimento.