O Haiti é um país desolado - o mais pobre de todo o hemisfério ocidental. Desde 29 de fevereiro de 2004, está sob intervenção militar estrangeira cujas tropas são de responsabilidade de um general brasileiro, Augusto Heleno Pereira Ribeiro. Essa intervenção é apenas mais uma na longa série de ocupações militares das quais o país já foi vítima.

A difícil - e triste - situação haitiana não é uma exceção. Mostra a política, levada ao extremo, das grandes potências para os países da América Latina. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o pacifista argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980, mostra que miséria e dominação militar são conseqüências do neoliberalismo, modelo que os Estados Unidos querem impor a todo o continente. Esquivel esteve à frente da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Povo Haitiano, que visitou o Haiti no início deste mês e que prepara um relatório sobre ataques a direitos humanos no país.

Segundo o ativista, a esperança do Haiti depende de dois fenômenos: a intensificação da solidariedade entre os povos e a resistência dos movimentos sociais de todo o continente à política de dominação das grandes potências. "Precisamos ter nossa agenda, claramente definida", afirma.

- Por que há tropas estrangeiras no Haiti?

- É a pergunta que nos colocamos incessantemente. As tropas no Haiti são diferentes das que ocupam outros países. O general Heleno tem outra sensibilidade militar, diferente das que conhecemos. Diz claramente que não é a força que vai resolver o problema de Haiti, mas que a solução depende de programas sociais, nos quais os soldados poderiam ajudar. Para os programas, entretanto, Estados Unidos e União Européia não estão enviando os recursos necessários. É preciso construir infra-estrutura básica, melhorar as condições nos hospitais, nas escolas, no saneamento. A permanência das tropas, hoje, não faz sentido, mas, mesmo que houvesse os tais programas sociais, deveria ser limitada e reorientada. Um dos aspectos fundamentais é a formação da polícia haitiana, com capacitação e equipamentos, cumprindo de forma efetiva e correta a função policial. Hoje, o efetivo policial é de apenas 4 mil homens, insuficiente para controlar o país. Essa força policial, a ser constituída, precisa ter ética, ter responsabilidade e ser acompanhada pela população.

- As tropas estrangeiras fazem um trabalho de observação. Não dão a impressão de estar imobilizadas diante da desgraça de um povo?

- Não cabe às tropas a reconstrução do Haiti. O auxílio internacional, nesse sentido, deveria vir por meio de equipes civis de solidariedade, cujo financiamento foi prometido pelas grandes potências. A União Européia diz que vai esperar o fim das eleições, marcadas para outubro e novembro, para enviar ajuda, ou seja, só no ano que vem. Não faz sentido deixar tropas estacionadas no Haiti. A população está se cansando de ver essas tropas em seu país, sem entender o que fazem. Além disso, o Estado haitiano é praticamente sem força. Isso ficou claro em nossa conversa com o presidente, Boniface Alexandre, e com o primeiro-ministro, Gérard Latortue. É um Estado mais formal que real. Quando o presidente nos recebeu, no Palácio do Governo, havia pessoas loiras, de olhos azuis, que eram soldados estadunidenses, marines, acompanhando a reunião. Por quê?

- Por que deixar tropas estacionadas no Haiti? Quais são os interesses por trás disso, considerando ingênuas as declarações de que estão no país por solidariedade?

- Há interesses muito claros do Canadá, da França e principalmente dos Estados Unidos. Há interesses econômicos e estratégicos, como a proximidade a Cuba. Há também um aspecto que não é muito debatido: com o seqüestro de Jean-Bertrand Aristide, presidente haitiano deposto em 2004, os estadunidenses quiseram abortar o movimento popular que se expandia justamente contra Aristide. Derrubaram o presidente e impuseram um sistema com o qual controlam os movimentos sociais haitianos.

O problema é que esse sistema não consegue solucionar a grave situação social do país. Acontecem diversos ataques aos direitos humanos, até mesmo por parte dos soldados, acusados de estupros. São casos pontuais, investigados e reprimidos quando ocorrem, mas que aumentam o nível de tensão do país. O Haiti é um lugar onde a esperança, a capacidade de viver dignamente estão sendo roubadas. Nessas condições, a população tenta sobreviver, mudando as coisas.

- Se a mudança não vem do Estado e das potências estrangeiras, de onde pode surgir?

- Existem grupos, no próprio Haiti, que lutam para edificar um novo projeto social, mas não é ainda uma força alternativa ao caos social e à dominação estrangeira. Isso leva um tempo... É um processo que caminha com outros, como a reforma das instituições, como o poder Judiciário. A impunidade jurídica é imensa e a corrupção, enorme.

- A situação catastrófica de Haiti é uma exceção na conjuntura latino-americana?

- É o reflexo, extremado, de políticas que afetam todo o continente, e todo o mundo. É resultado do neoliberalismo, do saque que ocorre em todos os países pobres. Os povos de todo o mundo devem olhar a situação haitiana e ver a materialização da prática neoliberal. Precisam olhar para o Haiti e ver como podem lutar para que não sejam arrastados para a mesma situação. Deve-se reforçar a solidariedade com o povo haitiano, com base em relações de povo a povo, para que se construa autonomia, soberania e sustentabilidade. É preciso inserir a luta do povo haitiano em um quadro de luta de todo o continente. Até mesmo porque o povo haitiano sofre os mesmos males que outros povos. Em janeiro, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional exigiram que o governo haitiano pagasse parte dos juros de sua dívida externa, algo como 52 milhões de dólares. Isso é um crime, pois gera ainda mais pobreza. A dívida haitiana deve ser perdoada.

- Como propagar a paz no continente, vista como um modelo alternativo ao vigente?

- Os povos estão deixando de ser espectadores para tornar-se protagonistas da mudança social. No Haiti, existem muitas organizações fortes, como as camponesas e as feministas. Precisam estar vinculadas a organizações de todo o continente, um pouco como ocorre no Fórum Social Mundial. Agora, é preciso que tenhamos força para desenvolver nossa própria política, alternativa à das grandes potências. Elas têm, de forma clara, o que querem para o mundo. Precisamos ter nossa agenda, claramente definida. Há, entretanto, muita pressão das grandes potências para que a América Latina não surja como uma forma alternativa de modelo político. A repressão aos movimentos populares do Haiti é exemplo disso.

Quem é

Prêmio Nobel da Paz em 1980, devido à sua luta contra a ditadura militar argentina, Adolfo Pérez Esquivel é um defensor histórico dos direitos humanos na América Latina. Preside a Fundação Latino-America pela Paz e Justiça e a Liga Internacional pelos Direitos Humanos e Libertação dos Povos. Em suas atividades, destaca-se a defesa de protestos não-violentos e a identificação com as lutas populares, que registra em seu livro Caminhando com o Povo (1995).