Donald Rumsfeld

Neste artigo vamos detalhar a condução da guerra no Iraque, seus acertos e erros, principalmente na sua primeira fase, entre 19 de março e 9 de abril de 2003, quando os americanos conquistam Bagdá.

A herança do Vietnã: preparando uma guerra de novo tipo

Depois dos duros anos da Guerra do Vietnã (1964-1975), os Estados Unidos desenvolveram uma hipersensibilidade a guerras em cenários distantes envolvendo um grande número de mortos.

A Guerra do Vietnã tornar-se-ia um paradigma longamente insuperado de como se podia perder uma guerra: havia superioridade total de meios (armas e equipamentos); havia a disponibilidade do chamado “manpower” (mais de 500 mil homens no teatro de operações) e uma ampla superioridade aérea, expressa nos terríveis bombardeios contra Hanói e Haiphong.

Contudo, os Estados Unidos não conseguiram a coesão política interna necessária para continuar a luta e vencer o conflito. A opinião pública americana chocada com a “contagem de corpos (cerca de 50 mil mortos americanos) e a sucessão de escândalos e massacres praticados em nome da democracia, exigiu - com uma profunda ruptura da unidade nacional - a retirada da guerra.

Numa atualização dramática da máxima de Clausewitz, o comando americano descobriu que toda a guerra é política e, se não houver coesão política nos seus objetivos, os meios militares serão sempre inúteis. Em 30 de abril de 1975, norte-vietnamitas e vietcongs entravam em Saigon, enquanto os americanos saíam em helicópteros pelo teto da embaixada assediada. Surgia a Síndrome do Vietnã.

A boa guerra, Kosovo: 1999, “...nós atiramos e eles morrem”

Depois do Vietnã, o comando militar americano impôs a si mesmo algumas normas que deveriam evitar, para todo o sempre, a repetição da guerra no sudeste asiático. Assim, três pontos passaram a ser valorizados: (i.) América não deveria envolver-se em guerras sobre as quais não houvesse um absoluto consenso político interno; (ii.) dever-se-ia sempre prever a possibilidade de um desengajamento e (iii), por fim, a América deveria utilizar sua superioridade tecnológica e financeira para evitar lutar a guerra dos “outros” (ou seja, lutar uma guerra nos moldes e possibilidades do adversário).

O grande mestre do pensamento militar oriental, Sun Tzu (autor de “Arte da Guerra” , que exerceu forte influencia na formulação do pensamento estratégico de Mao Tse dong e de Vo Giap) tinha entre suas máximas prediletas a idéia de que a superioridade de meios deve permitir “a moldagem do campo de batalha”. Ou seja, quem tem mais meios pode, e deve, decidir quando, onde e como se trava a luta, recusando-se a lutar nos termos impostos pelo adversário.

Desta forma, os recursos acumulados pelo mais forte podem ser melhor dimensionados e exercer toda sua potencialidade. No Vietnã os Estados Unidos, mais fortes e mais técnicos, lutaram uma guerra de guerrilhas que favoreceu quem tinha menos meios, não podendo usar tudo o que tinham para destruir o adversário. A máxima de Sun Tzu exerceu grande impacto sobre as formulações da moderna estratégia americana.

Assim, nos três maiores conflitos que se envolveram no final do século XX (na Bósnia, depois de 1991; no Kosovo, em 1999 e no Iraque em 1991) os americanos procuraram tirar o máximo proveito de sua superioridade, moldando o campo de batalha e, consequentemente, negando ao inimigo o uso dos seus melhores meios.

Talvez Kosovo, em 1999, tenha sido o exemplo mais bem acabado da nova estratégia: os sérvios, imbuídos de forte nacionalismo, prepararam-se para receber os invasores americanos através de uma guerra de emboscadas e de resistência nas montanhas, onde possuíam a superioridade do terreno, grande preparo anterior e meios adequados.

O comando americano, contudo, recusou-se a lutar nos termos dos sérvios. Usou de sua superioridade aérea e iniciou uma série de bombardeios, com aviação e mísseis, não só contra alvos militares no Kosovo, mas ainda contra alvos econômicos na própria Sérvia. Após quase 50 dias de bombardeios, e uma redução catastrófica do PIB sérvio, as autoridades de Belgrado pediram o cessar-fogo e cederam o território de Kosovo. Na ocasião, o general Colin Powell, responsável pela estratégia americana, rejubilava-se com os novos métodos. Esta era a guerra que superava a Síndrome do Vietnã: “...nós atiramos, eles morrem!”.

A admirável guerra moderna do senhor Rumsfeld

Contudo, o novo modelo de guerra implicava em algumas limitações. Assemelhava-se, bem mais, a uma “expedição punitiva”, onde a destruição de alvos inimigos - especialmente aqueles ligados ao aparelho do Estado-Nação (alvos militares, usinas, meios de comunicação e transporte, etc... ) - era garantida. Contudo, o controle efetivo do território, a destruição de elementos humanos hostis e a implantação de um poder amigo não podiam ser alcançados desta forma. Somente a velha forma de dispor de massa humana - “the boots on the ground” - garantia a ocupação de um território.

Mesmo a Guerra do Iraque de 1991 - quando tais meios foram largamente utilizados - não culminou numa ação terrestre garantidora dos interesses americanos no país, permitindo-se que Saddam Hussein mais uma vez massacrasse xiitas e curdos, os “aliados” dos americanos. Assim, tornou-se óbvio para muitos que a estratégia americana padecia de uma certa paralisia no tocante ao envolvimento de tropas terrestres, particularmente em face ao seu custo humano, político e financeiro. Muitos opositores de Clinton, antes de 2001, acusavam a existência de um grupo de “generais de Clinton” que não gostavam de lutar...

A administração Bush, após 2001, resolveu superar em definitivo a Síndrome do Vietnã, abrindo uma nova página na história mundial da guerra. Coube a Donald Rumsfeld, nomeado secretário de Defesa e um especialista em assuntos militares, formular e impor a nova concepção estratégica de guerra dos Estados Unidos.

A máxima doutrinária de Rumsfeld - o que iria nuclear uma pretensa “Doutrina Rumsfeld da Guerra Moderna” - residia no axioma “Velocidade vence massa”. A idéia básica era o desenvolvimento de meios tecnológicos modernos, baseados na extrema flexibilidade, controle do espaço, comando articulado e integrado e informação de qualidade como forma de envolver, debordar, desarticular e aniquilar grandes massas de homens e meios oferecidas por um adversário para combate. Assim, o novíssimo conceito de C4ISR (onde se lê “Command, Control, Communications, Computers, Intelligence, Surveillance and Reconnaissance” ) deveria ser capaz de superar os elementos que faziam, então, da guerra uma arte (e não uma ciência).

Rumsfeld deu a si mesmo a tarefa de “cientificar” a guerra, abolindo dois princípios que desde Aníbal e Alexandre anulavam o caráter científico das guerras: a “névoa da guerra” e a “friccção”. Trata-se aqui de dois conceitos clássicos de Clausewitz, que apontam para o imprevisível, para fatores aleatórios que agem desde o primeiro tiro sobre o desenrolar da guerra. Neste sentido, Rumsfeld - após se assegurar do completo controle do campo de batalha através da panóplia tecnológica disponível para a realização do conceito de C4ISR - teria tornado a guerra um composição arquitetônico-geométrica.

2003, a nova guerra no Iraque

Os meios disponíveis pelos americanos - e sua coalizão - no Iraque bastaram para os objetivos militares imediatos previstos por Rumsfeld. Com o deslanchar da guerra em 19 de abril de 2003, em meio ao uso maciço de todos os meios disponíveis, e com uso intenso de um grande poder de fogo (inclusive com o deslanchar da chamada ofensiva do “Choque e Pavor”, com o uso extenso de super-bombas em espaço urbano), a vanguarda americana atingia Bagdá em 9 de abril.

Em menos de 12 dias o poderoso Estado baasista, capaz de torturar e aterrorizar sua própria população, ruía frente ao avanço americano. Entre 9 de abril e 1 de maio de 2003 - quando o presidente Bush, à bordo do USS Lincoln proclama “tarefa encerrada” - os americanos e seus aliados dedicam-se a “limpeza do território”, dominando núcleos e fortalezas ainda resistentes, como Basra, ao sul, ou Tikrit, ao norte.

A ação, em seu conjunto, baseou-se largamente na noção de “velocidade vence massa”, com os americanos reeditando uma versão altamente tecnificada da chamada “Blitzkrieg”, ou guerra relâmpago praticada pelos alemães do general Heinz Guderian (1888-1954) e do estrategista britânico John Fuller (1878-1966) contra a Polônia e a França na II Guerra Mundial. Tratou-se de um avanço irresistível, centrado em meios mecanizados de última geração, com apoio aéreo direto - aviões, mísseis e helicópteros - visando a penetração em profundidade, desorganizando o inimigo, cortando suas linhas e atingindo seus centros de comando, numa operação de decapitação. Num belo raciocínio baseado em Clausewitz, os americanos reconheciam o centro de gravidade - o “Schwerpunkt”, de todo o Iraque - em Bagdá, nas tropas aí concentradas e no grupo em volta de Saddam Hussein. Assim, em vez de dispersar meios e travar batalhas dissuasórias, tratou-se de seguir em direção a Bagdá e travar aí a “mãe de todas as batalhas”, na qual as forças de Saddam (exército nacional + Guarda Republicana, as divisões Al Rachid e Babilônia, seriam destroçadas).

Em 9 de abril de 2003 os americanos atingiam seu objetivo. Uma brigada mecanizada entrava em Bagdá em pleno dia, operando o reconhecimento do terreno. Não houve resistência. Travou-se uma escaramuça pela posse do aeroporto internacional e, em seguida, tropas americanas ocupavam o Ministério do Petróleo, a defesa e os palácios de Saddam Hussein. Bagdá, a esplendorosa capital do califado árabe, estava conquistada.

O que acontecera com as tropas de Saddam, com a aguerrida Guarda Republicana, com os voluntários feddayan da Revolução? Amedrontaram-se frente ao poderio americano, afirmava a mídia ocidental na região.

Enquanto isso, Bagdá, num espetáculo inédito das guerras modernas, era colocada à saque. O vandalismo tomava conta das ruas. Prédios públicos, lojas comerciais e residências eram saqueadas. Os novos ocupantes ordenam a dissolução da polícia e das forças armadas, causando o caos e a comoção na cidade. Enquanto as forças americanas securitizavam o Ministério do Petróleo, o Museu nacional de Antiguidades e a Biblioteca da Universidade de Bagdá ardem em chamas.

Os americanos ainda procuravam o comando militar iraquiano. Na verdade, senhores de uma nova estratégia, os elementos centrais do núcleo militar do Iraque operavam uma passagem invisível para a clandestinidade, levando armas, meios de comunicação e farta munição.

Com “cachets” (esconderijos) e bunkers subterrâneos, abastecidos de dinheiro e munição espalhados por todo o país, uma vontade amparada no nacionalismo e na religião, os quadros médios (suboficiais, capitães e majores) passaram maciçamente para a clandestinidade, iniciando uma segunda guerra no Iraque. Depois de proclamada a vitória americana, em 01/05/2003 num espetáculo de teatralismo belicista à bordo do navio-aeródramo A. Lincoln, começaria uma nova guerra totalmente inesperada pelos americanos: desigual, cruel e assimétrica, a resistência iraquiana começava - só então - a combater os Estados Unidos.

Uma guerra que se queria moderna, embora profundamente dessimétrica - entre um adversário forte e poderoso contra um Estado enfraquecido - transformava-se, mesmo depois da desaparição do Estado-Nação, numa guerra de resistência nacional, a nova guerra assimétrica.