“Uma coisa é certa, o sangue nas ruas ou debaixo do chão tem uma dimensão de horror que transforma todo o resto em assunto periférico. Mas o mundo segue sendo o mundo”.

Peter Preston, The Guardian, 11 de julho de 2005

Na manhã do dia 7 de julho, fui avisado na porta do Underground, que o serviço da “Picadilly line” havia sido interrompido, mas ninguem sabia o motivo da paralização. Voltei para casa, e soube das notícias do atentado de Londres, através da televisão. Naquele primeiro momento, as informações eram muito confusas, e todos aguardavam o pronunciamento do primeiro-ministro Tony Blair que seria seguido, algumas horas depois, por uma manifestação dos governantes do G 8, que estavam reunidos em Gleneagles, na Escócia.

Como no dia 11 de setembro de 2001, fiquei algumas horas em estado de paralisia ou perplexidade na frente da televisão, olhando as notícias e tentando pôr em ordem as informações, e as minhas próprias idéias.

Já faz tempo que se previa um atentado terrorista na cidade de Londres, sobretudo depois do 11 de março de 2004, na cidade de Madrid. Mas como sempre, o atentado acabou acontecendo numa hora e num lugar inesperados, e o sentimento de segurança coletiva da população se desfez em poucos minutos, enquanto Londres era submetida ao “maior ataque externo, desde a II Guerra Mundial”, segundo os analistas da BBC.

E todas as conseqüências e reações imediatas confirmavam a gravidade do momento: a agenda da reunião do G8, na Escócia, foi alterada radicalmente, e a imprensa e meios de comunicação de todo mundo mudaram o foco de suas preocupações. Num par de horas, a pobreza da África, o deterioro do clima mundial, a paralisia da União Européia e a vitória Olímpica de Londres foram substituídas, pelos atentados ao sistema de transporte da cidade de Londres. Fora da Inglaterra, a Dinamarca e a Itália se colocaram imediatamente em estado de alerta máxima, convencidos de que serão os próximos alvos do “terrorismo islâmico”.

Ao lado de tudo isto a imagem das pessoas mortas ou feridas, e o sofrimento dos que já buscavam parentes e amigos desde o primeiro momento, só contribuía para magnificar as dimensões da catástrofe.

No meio de toda esta dor e tristeza coletiva, entretanto, chama a atenção do observador as desproporções e as inconseqüências existentes nestes acontecimentos. Para começar, o “maior ataque externo” a Londres, desde a II Guerra Mundial, foi feita com apenas 4 bombas de pequeno tamanho, quase caseiras, apesar do seu material militar.

E apesar de que os cálculos variem, nenhum analista fala em mais do que dez ou doze pessoas envolvidas, e alguém já falou na possibilidade de que fossem apenas uma ou duas pessoas. Algo quase insignificante ao lado de alguns atentados do IRA ou do ETA, por exemplo, ou mesmo do movimento Aum Shinrikyo no Japão, que nunca alcançaram tamanha repercussão mundial. Na verdade, o terrorismo tem sido desde o século XIX e antes, um fenômeno quase inteiramente nacional ou regional na sua escala e nos seus objetivos.

Só o al-Qaeda e suas ramificações ou imitações conseguiram alcançar esta dimensão e importância mundial, graças ao efeito multiplicador e publicitário da estratégia de combate global dos Estados Unidos. Por sua vez, depois da guerra do Afeganistão, o movimento do al-Qaeda se defez de sua base física e de sua estrutura orgânica e hierárquica, e se descentralizou radicalmente, dando origem a um movimento horizontal, uma multidão de pequenos grupos que atuam de forma independente ou autônoma, mantendo em comum apenas uma ideologia muito geral e um mesmo método de luta.

Numa clave mercantil, se poderia dizer que o al-Qaeda se transformou num label de circulação global e uso gratuito, e os atentados terroristas passaram a se organizar de maneira fragmentada e flexível, uma nova forma de self-service, que os ingleses apelidaram de “do-it-yourself terrorism”.

Como conseqüência, o movimento perdeu a capacidade de acumular forças e estabelecer prioridades táticas e estratégicas. Na verdade, abandonou qualquer projeto de instalação ou conquista de poder territorial e se transformou numa pura retórica da violencia. Mas com isto, também desmontou a estratégia da “guerra ao terror” em escala mundial, proposta e liderada pelo presidente Bush, porque seus comandantes não sabem mais onde e quando aplicar o seu gigantesco poder militar.

Os terroristas não ameaçam de fato nenhuma das estruturas do poder global das grandes potências, mas ao mesmo tempo não há como derrotá-los definitivamente, do ponto de vista exclusivamente militar. Por outro lado, fica difícil qualquer tipo de negociação diplomática, porque o movimento terrorista não tem mais básica física nem organizacional nem tem apoio de estados ou poderes territoriais. Como conseqüência, a “guerra ao terror”do presidente Bush vem se transformando cada vez mais num assunto privativo dos serviços de segurança e inteligência, e nesta guerra, a grande maioria da população só tem o direito de ser vítima.

Ao meio-dia em ponto, como nos velhos tempos da pontualidade britânica, o primeiro-ministro Tony Blair começou seu pronunciamento à nação inglesa. De imediato, chamava a atenção o nervosismo e o descontrole do primeiro-ministro que se caracteriza por ser uma pessoa extremamente confiante e segura de si mesma. Ficava claro que ainda não tinha informação suficiente sobre a verdadeira extensão do atentado terrorista.

Adotou um tom tenso e dramático como se estivesse seguindo a risca o modelo Churchill, da II Guerra Mundial. E voltou à tecla clássica do enfrentamento bipolar entre “civilização” e “barbárie”, alem de insistir na tese de que os responsáveis por estes atentados “não têm respeito pela vida humana”. Estava consternado e convincente, mas sua sincera tensão e tristeza talvez explique sua perda de perspectiva, no momento em que se dirigia ao povo inglês.

Quase ninguem mais lembra que a 2º Guerra do Iraque já havia sido anunciada pelo primeiro-mistro inglês e pelo presidente Bill Clinton, numa entrevista coletiva em Washington, no dia 5 de fevereiro de 1998, muito antes portanto do atentado das Torres Gêmeas, em 2001. A Guerra foi protelada até 2003, e acabou sendo liderada por Bush e não Clinton, mas durante toda a década de 90, a aviação anglo-americana bombardeou de forma quase contínua o território iraquiano, inclusive com bombas de “urânio reduzido”.

Somando com a Guerra do Afeganistão, calcula-se que tenham morrido mais de 100 mil civis, um numero tão gigantesco de homens, mulheres e crianças que se confunde com a areia e as montanhas desérticas da região. Afegãos e iraquianos que não tinham nenhum culpa de viver sob tiranias que foram inventadas ou patrocinadas durante muito tempo, pelos póprios anglo-americanos. Aliás, neste terreno da barbárie, também fica difícil de conjugar civilidade com o que passou em Falluja e Abu Ghraib, e o que segue passando nas prisões de Guantanamo e de Camp Bread Basket.

Algumas hora depois do primeiro pronunciamento de Tony Blair, os governantes do G8 apareceram frente às câmeras das televisões dando seu apoio e solidariedade ao povo e ao primeiro ministro britânico. Agora, a imagem criada pela televisão era muito mais forte do que o próprio texto do primeiro-ministro. Todas as autoridades presentes em Gleneagles se perfilaram ao redor de Tony Blair, mas as câmeras recortaram um sub-conjunto bem nítido e orientado, incluindo as figuras sérias, quase taciturnas, de Geroge Bush e Jacques Chirac enquadrando a pessoa do primeiro-ministro inglês.

Foi dentro deste quadro que Blair voltou a falar, num tom quase magoado, sobre os atentados que ocorreram justamente no momento em que o G 8 estava discutindo uma ajuda para os países mais pobres da África. Neste caso, a intenção da imagem era clara, pretendia sublinhar o alinhamento do presidente frances, contrário a Guerra do Iraque, mas aliado na guerra ao terrorismo. Mas ao mesmo tempo, a cena sublinhava a existência de de uma espécie de “trintade do poder mundial”.

A primeira reunião do G7 , essa “mini-cúpula mundial”, foi realizada em Rambouillet, em 1975, mas muito antes disto, desde o século XVIII, a França e a Grã Bretanha já exercem um poder inconteste sobre o mundo europeu e extra-eruopeu. E no século XX, os Estados Unidos foram incorporados ao grupo assumindo sua liderança depois da II Guerra Mundial. Somando tudo, já fazem uns 300 anos que estes três países “combatem a barbárie” através do mundo, enquanto decidem os seus destinos pela via do mercado ou do poder das armas.

Neste período a Grã Bretanha fez aproximadamente 90 guerras coloniais ou “expedições punitivas” contra povos e países da África e da Ásia, a França fez cerca de 30 nas mesmas regiões, e os Estados Unidos que começou mais tarde, já fez cerca 50 intervenções, guierras ou punições a escala global. Neste sentido, se pode dizer com plena convicção históricaa que o triunvirato destacado pela BBC, sintetiza de forma perfeita o poder e a “vontade civilizatória” dos europeus e norte-americanos. Foi neste exato momento que sai da minha perplexidade e interrompi minhas idéias, porque achei que estava indo por caminhos inadequados, sobretudo num dia de imensa tristeza e pezar coletivo.

No dia seguinte, fui olhar de perto a Estação de King’s Cross e de Russel Square, onde foi o epicentro do atentado a Londres: o olhar das pessoas que passavam, as flores depositadas, os parentes em busca dos desaparecidos, os bombeiros que subiam e desciam e o corre-corre dos policiais e dos homens dos serviços de segurança. Dezenas de pessoas paradas como eu, com olhar perdido e triste.

Depois segui caminhando na direção da Tavistock Square, onde explodiu a quarta bomba dentro de um ônibus, e fui pensando com meus botões que talvez existam mesmo neste momento, dois mundos completamente diferentes e incomunicáveis dentro da sociedade contemporânea: o mundo dos homens do poder - da guerra e dos negócios - e o mundo dos “homens comuns” que morrem no Iraque como em Londres, sem serem consultados nem avisados, e que em geral não tem nada a ver com esta “guerra privativa” dos homens do poder. Pobres “homens comuns”!

The Guardian