E o man seria qualquer um de nós, negro, amarelo, mestiço, quase branco ou quase wasp. Nesse caminho, nesse way, a todos que na terra USA chegássemos, aportássemos, bastaria praticar o manual “Só é pobre quem quer”, para conseguir ser um best. E ser um best, em suma, é o próprio sonho americano.

Ser um best, o melhor, é mais que um superlativo de good ou de well. Ser um best, para os modestos, é ser o melhor na sua profissão, ou na sua atividade. No sonho americano, isto significa mais que o dar o melhor de si em qualquer ação, é mais que o envolver a própria pessoa no seu agir. É vencer todos os demais, é derrubar todos os outros na sua profissão, é ser o boss, o chefe, é mais, é ser o tycoon, o magnata, o godfather, o chefão, é ser o God, enfim, o poderoso, o supremo. Isto, para quem conhece o preço dessa meta, é apavorante. Porque é uma anti-humanidade. Porque também guarda uma desumana e inumana mentira.

Um paradoxo de vigarista. Se o the best nasceu para todos, ninguém jamais será the best. Por um lado, este superlativo exige que todos os demais sejam superados e vencidos. Por outro, dizem os vigaristas, os demais também são the best. Porque, continuam, os Estados Unidos são a terra da oportunidade. Para todos, para todos ...

Ainda que o sonho não se realize para todos, façamos uma recordação, que é uma forma de pensar. Quando lembramos, refletimos, que o extraordinário poder de compra para todos exige a contrapartida de poder de venda de todos, para todos, entramos em uma coisa mais profunda que um thriller. Pela simples razão de que isto universaliza, universaliza, não, unifica tudo e todas as coisas à qualidade útil de mercadoria. O que vale um beijo, um afeto, um amor, isto não se pergunta.

Avalia-se, com a mão sobre o talonário de cheques: quanto custa um beijo, um afeto, um olhar de ternura? Paga-se, em dólar. A própria pessoa, a própria beleza e criação transformam-se em algo degradado, infamante. Mas os pobres, reconheçamos, os miseráveis de todo o mundo não se dispõem a sentir muita filosofia ou discutir estética. Estão carentes de tudo, de alimentos, de pedras no estômago, de casa, de abrigo, na rua ou na prisão, que importa, e por isto seguem para o rainbow, para a arca de ouro que está ao pé do arco-íris. O próximo capítulo dessa busca, sabemos, é um vácuo, um mergulho no espaço além da terra.

O pesadelo americano, para a maioria da gente, foi o 11 de setembro de 2001. Aquela imagem do avião a perfurar uma das torres gêmeas, como uma agulha perfura um tumor, e de lá explodindo pus em forma de fogo, e depois um outro, a ratificar e confirmar o absurdo que era o terror na terra onde sempre nasce o arco-íris, e depois o desabamento, do aço, do concreto à experiência, os gritos, o espanto, os corpos dilacerados, aquilo foi a encarnação do pesadelo em terras norte-americanas. O comum da gente toma aquilo como o pesadelo porque o comum da gente acredita no que vê e no que se repete à exaustão até o nível de idiotia.

Mas o pesadelo e seu outro, o sonho norte-americano, vem de antes, bem antes. “Estranhos Frutos, As árvores do Sul suportam estranhos frutos, Sangue nas folhas, Sangue na raiz, Corpos negros balançando na brisa do Sul, Estranhos frutos pendurados nas árvores de madeira branca... Cena do campo do nobre Sul, Os olhos arregalados e as bocas torcidas, O doce perfume da magnólia e frescor, E de repente o cheiro de carne queimada.. Eis um fruto para o corvo bicar, Para a chuva vincar, Para o vento sugar, Para o sol estragar, Para a árvore derrubar, Nesta estranha e amarga colheita .”

Strange Fruit Southern trees bear strange fruit Blood on the leaves Blood at the root Black bodies swinging in the southern breeze Strange fruit hanging from the poplar trees Pastoral scene of the gallant south The bulging eyes and the twisted mouth The scent of magnolia sweet and fresh Then the sudden smell of burning flesh Here is a fruit for the crows to pluck for the rain to gather for the wind to suck for the sun to rot for the tree to drop Here is a strange and bitter crop

Esta lembrança da eterna canção de Billie Holiday não é forçada nem gratuita, quando se aproximam o sonho e seu siamês, o pesadelo, quando unimos o visto nos últimos dias ao lembrado. As fotos, os relatos do que restou depois da passagem do furacão Katrina traduzem melhor o que aproximamos. Em lugar de negros enforcados nos campos do Sul dos Estados Unidos tivemos negros, multidões de negros ilhados, em desespero, em depósitos de estádios e nas ruas de Nova Orleans, e em tal número e presença, que mais pareciam constituir os 100% da população da cidade.

É certo que Nova Orleans é uma cidade de minoria branca, mas não alcança produzir corpos negros como nessa colheita depois do Katrina. E a razão dessa estranha colheita não é difícil de achar. Os negros não conseguiram um lugar entre os the best, porque se encontram entre os mais pobres da população. Ou, se quiserem, invertam a ordem: porque são os mais pobres, não conseguem seu lugar entre os the best.

Eles são “aqueles que escolheram ficar para trás”, como de imediato, nas primeiras horas, foi divulgado pela grande imprensa do país das oportunidades. E com isto queriam não somente se referir aos que se comprazem em permanecer na linha abaixo de pobreza. Queriam destacar que as vítimas não saíram, e não atenderam aos avisos da catástrofe (natural, naturalmente), porque não quiseram, por preguiça (gente, que é sabido, muito preguiçosa), ou por negligência (gente de ancestrais negros, negligentes, of course, mas isto escrito entre parênteses).

E por que então não fugiram para melhor terra, supondo que exista alguma hospitaleira na vizinhança, no Sul dos Estados Unidos? O jornalista Chris Floyd, no CounterPunch, esclareceu: “É óbvio que a vasta maioria daqueles que falharam em fugir são pobres: eles não tinham nenhum lugar para ir, nenhum meio para sustentar a si e a sua família em outra terra. Enquanto certamente existiam pessoas que ficaram para trás por escolha, a maioria ficou porque não tinha escolha. Eles foram apanhados por sua pobreza e muitos pagaram por isto com a vida” Daí a presença de quase 100% de negros entre os frutos do furacão. Que são estranhos a um nível que as fotos não revelam, não sabemos ainda se por força da imprensa patriótica. O fato é que, enquanto em 11 de setembro de 2001 o forte impacto veio das imagens, aqui, em Nova Orleans depois do Katrina, o horror vem dos relatos:

“Produtos químicos tóxicos e petróleo também estão fluindo, assim como o esgoto. Corpos em decomposição têm sido vistos flutuando na área, assim como caixões com restos mortais que foram desenterrados dos cemitérios pela força da maré... Os policiais se trancaram nas suas próprias delegacias com medo dos saqueadores, dos tiroteios e das gangues que tomam conta da cidade”. Ou quando se referem às condições do abrigo (did you say shelter?!), no Ginásio de Esportes:...

“Crianças dormem em meio ao lixo. Saquinhos de cocaína entopem os sanitários. Nas paredes ao lado das máquinas de refrigerante destruídas por adolescentes há manchas de sangue. O Superdome, até a semana passada um moderno estádio esportivo, se tornou palco do terror das mais de 20 mil pessoas que lá buscaram abrigo após a chegada do furacão Katrina. - Estamos como animais, urinando no chão - contou Taffany Smith, embalando o filho de três semanas, Terry. Com a outra mão, segurava uma preciosa garrafa de água mineral - objeto de disputas que chegam à agressão.... Um homem pulou de uma altura de 15 metros, gritando que não tinha mais razão para viver... Durante o dia, foram encontrados sete corpos próximo ao estádio. - Não se trata nem cachorro desse jeito.

Eu enterrei meu cão - gritava Daniel Edwards, apontando para uma idosa, morta em uma cadeira de rodas, sem socorro... Por causa do calor e do cheiro fétido, outros preferem dormir fora, no terraço, e alguns tiraram a roupa e passaram a andar nus pelo local. April Thomas, que se refugiou no Superdome com os 11 filhos, instituiu um sistema de rodízio para o sono da família: - É um hospício, aqui. Temos que afastar os agressores constantemente. Temos que lutar pela vida. Quando acordo, a primeira coisa que penso é: ‘Onde estão os meus filhos. Estão todos aqui?’ ".

E então, para conter o caos, para impor a ordem, Bush faz voltar algumas tropas do Iraque. Com ordem de atirar para matar, como foram treinadas e como fazem com os rebeldes no Iraque. Trata-se de uma operação de guerra. Não, pior. Trata-se de uma guerra, para dominar com repressão mortal a negligência, a preguiça, enfim, para resolver com sangue a grande anarquia do capital norte-americano. Que não organiza sequer a defesa de uma cidade abaixo do nível do mar, cidade de maioria negra, por certo, mas ainda assim uma cidade norte-americana.

Então nos ocorre a pergunta: que roteirista louco, que artista paranóico, que escritor pervertido, que imaginação neurótica seria capaz de filmar, pintar, escrever ou imaginar um pesadelo assim? Os cientistas, esses malditos que não comungam do Estado fundamentalista de Bush, já anunciam que “a temporada de furacões do oceano Atlântico está apenas na metade, e ainda há uma probabilidade de 43% de outro grande furacão atingir a costa dos Estados Unidos em setembro”.

Quando pensávamos haver passado pelo pior, recebemos tal previsão. Isto já passou de um pesadelo. Parece que mergulhamos por fim no verdadeiro sonho norte-americano.

ALAI