Mais de oito mil carros incendiados em quase 300 cidades; espaços públicos depredados; mais de 2600 pessoas detidas; e a bandeira “We hate France and France hates us” (nós odiamos a França e a França nos odeia). Os protestos, que começaram nos subúrbios de Paris em 27 de outubro, multiplicaram-se por todo país nas duas últimas semanas.

A resposta do Estado francês foi invocar uma lei de 1955, que autoriza adoção de medidas de emergência, bem como determinar a deportação de qualquer estrangeiro considerado culpado.

Segundo informações, os responsáveis, em sua maioria, são jovens, pobres, desempregados, provenientes de grupos socialmente vulneráveis, constituindo, sobretudo, a segunda geração de mulçumanos da África do Norte e Ocidental. Dados apontam que o desemprego da população jovem na França é um dos mais altos da Europa, chegando a 23%, sendo o desemprego dos jovens mulçumanos na ordem de 40%. Atente-se que na França há em média 5 a 6 milhões de mulçumanos, o que representa um terço do total de mulçumanos na União Européia.

Os recentes acontecimentos ocorridos na França remetem à reflexão a respeito da relação entre discriminação e pobreza, no marco do multiculturalismo.

Os protestos conferiram visibilidade à situação de alienação econômica e social de grande parte da população mulçumana, que por duas gerações tem se isolado na hostilidade dos bandlieues ao redor de muitas cidades francesas, com precárias condições de moradia, educação, transporte, ao que se soma o elevado desemprego, compondo um grave quadro de exclusão social. Refletem, assim, o legado de mais de trinta anos de segregração étnica e social destas comunidades “guetizadas”, bem como o fracasso do modelo de integração social do Estado francês, baseado fudamentalmente na ótica da integração individual.

Ainda que as medidas de emergência tenham tido o impacto inicial de reduzir o grau de violência – tendo o Presidente Jacques Chirac em pronunciamento esta semana revelado que serão elas estendidas por mais três meses –, a resposta repressiva-punitiva mostra-se absolutamente insuficiente para enfrentar a complexidade do problema.

A discriminação implica pobreza e a pobreza implica discriminação. Romper este ciclo vicioso demanda a adoção não apenas de medidas repressivas-punitivas, mas também de medidas afirmativas e promocionais. Isto é, não basta apenas proibir a discriminação, já que a negativa de exclusão não traduz automaticamente a inclusão das populações mais vulneráveis. Além proibir a discriminação, faz-se fundamental tomar medidas que propiciem maiores possibilidades de inclusão social dos grupos socialmente vulneráveis, o que compreende políticas sociais no campo da educação, do trabalho, bem como políticas urbanas e de habitação.

É a vertente promocional – e não a vertente punitiva – que é capaz de criar o sentimento de pertença e um senso de identidade social. É a vertente promocional que é capaz de romper com o isolamento dos guetos e com a repulsa e a hostilidade da mútua exclusão entre as comunidades excluídas e a sociedade que as exclui, permitindo fluir a riqueza da diversidade e do multiculturalismo, convertendo muros em pontes compartilhadas.

O drama da sociedade francesa remete à experiência brasileira dos orçamentos participativos. Assim que introduzidos, nas consultas populares a respeito das prioridades orçamentárias, as comunidades periféricas apontaram como escolha primeira e prioritária o asfalto. Demandar asfalto, em sua simbologia, significa demandar pertença, integração e pavimentação social