“O Mercosul começou pelo comercial e pelo diplomático e há uma grande dificuldade em fazêlo ativo no campo das políticas sociais”, analisa José Flávio Sombra Saraiva, professor de História das Relações Internacionais da Universidade de Brasilía (UnB).

O especialista exemplifica uma medida que poderia ser aproveitada pelo Brasil: a escola pública argentina em período integral. “Seria o Mercosul educacional”, afirma. Segundo ele, a entrada da Venezuela voltará o Mercosul para questões energéticas – como o petróleo – e de infra-estrutura, mas tampouco resolverá o problema.

- A entrada da Venezuela no Mercosul pode acrescentar à pauta do bloco comercial um conteúdo mais político?

- A entrada da Venezuela – agora ou mais tarde – era quase inexorável, porque a complementaridade e a centralidade econômica da América do Sul passam pela triangulação Argentina-Brasil-Venezuela. É muito difícil aceitar um futuro na região sem essa articulação econômica. As três economias juntas representam mais de três quartos de toda a economia regional. Há um eixo estratégico no plano energético e uma complementaridade nessa área de infra-estrutura da região pelas duas interligações, via Amazônia e via platina.

- Mas o que significa para o Mercosul o fato de a integração venezuelana ter se dado com o presidente Hugo Chávez?

- Creio que empurra o Mercosul para uma dimensão mais de infra-estrutura e cooperação econômica, sobretudo de complementaridade. A vocação comercialista do Mercosul ancorada na dualidade Argentina- Brasil marcou a história do bloco. Essa polarização se modifica com a chegada da Venezuela, que é mais distinta em relação à Argentina e ao Brasil por sua própria história. A Venezuela está mais ancorada em uma realidade caribenha, andina e amazônica, enquanto o Brasil esteve mais voltado para o mundo platino. O resultante dessa inclusão é positivo.

- Alguns analistas dizem que as divergências comerciais entre Argentina e Brasil são o sintoma do fracasso do Mercosul. O senhor concorda?

- Não. Os avanços estruturais do Mercosul teriam, em algum momento, que esgotar certos padrões de negociação e partir para para outros padrões. Isso ocorreu na formação da União Européia. As disputas comerciais compõem um capítulo da aproximação das duas economias. Houve uma forte dramatização desses conflitos, creio que foram menores do que poderiam ser porque, afinal, envolvem os grandes grupos econômicos, os que têm vozes na mídia, isso é natural. Mas não vejo isso como falência. Evidentemente, haveria conflitos nessa área, pois o Brasil manteve uma base industrial avançada, enquanto a Argentina passou por uma desindustrialização dramática. A longo prazo, a perspectiva é uma visão de cooperação nessa área.

- E por que a pauta social do Mercosul é tão tímida, no sentido de proposição de políticas para a redução das desigualdades?

- Isso é algo a registrar como uma deficiência do Mercosul, que ficou prisioneiro desse primeiro ciclo de acomodação no campo econômico, especialmente o comercial. Depois, veio o segundo ciclo de evolução de coordenação de políticas públicas até na área da educação, com avanço de protocolos de reconhecimento de títulos mútuos, na movimentação dos cidadãos. No entanto, ficou aquela deficiência, uma cooperação que se esperaria ao longo desses anos um pouco mais efetiva de intercâmbio nas experiências das políticas sociais. É algo a lamentar. A dimensão social do Mercosul é um paradoxo justamente para esses governos que vieram reparar as conseqüências da desnacionalização da economia e uma internacionalização perversa que os países do bloco assistiram nos anos 90. Mesmos com uma agenda social não conseguiram avançar. Há mais déficits nesse campo do que nas questões econômicas e comerciais. Há um longo caminho a ser percorrido.

- E por que a questão social não avança?

- Porque o núcleo duro dos processos decisórios do Mercosul prioriza o comércio, a articulação da diplomacia, as questões estratégicas de longo prazo, e o capítulo social foi ficando de fora, como a cooperação em saúde e em educação. Durante muitos anos, tínhamos condições de transportar para o Brasil grande parte da experiência da formação de uma sociedade mais civilizada às margens do capitalismo como a experiência da escola de Sarmiento (Domingo Faustino Sarmiento, presidente argentino entre 1868 e 1874), a escola pública argentina em período integral. Seria o Mercosul educacional, poderíamos aprender com essa sociedade, apesar de todos os choques e do crescimento da desigualdade social nos últimos anos. É um exemplo de experiência importante que o Brasil poderia incorporar. O Mercosul começou pelo comercial e pelo diplomático e há uma grande dificuldade em fazê-lo ativo no campo das políticas sociais.

- Na mesma reunião em que a Venezuela foi aceita no bloco, determinou-se também a criação do Parlamento do Mercosul em 2006. No entanto, esse órgão terá apenas caráter consultivo. Isso não restringe a possibilidade de ampliação da pauta do bloco?

- Eu diria que esse é o limite do possível. Há uma dificuldade latente no Mercosul. Os seus sócios jamais abdicaram de manter a força do Estado nacional em detrimento de uma redução da soberania para compartilhar com os demais. O problema do Parlamento é justamente esse. Sua dimensão absolutamente recomendatória fi cará amarrada ao fato de que serão os dirigentes dos Estados nacionais e as forças econômicas e políticas que darão a última palavra no bloco. É parte do déficit participativo no Mercosul.

- O senhor vê ligações entre a presença dos militares estadunidenses no Paraguai e o fortalecimento da proposta de integração regional na América Latina? Houve críticas públicas da diplomacia brasileira e argentina...

- Todos sabemos que os Estados Unidos enfrentam uma dificuldade para construir consensos. Sua hegemonia já foi melhor aceita. Mas isso foi se perdendo, a presença estadunidense na América Latina nem sempre manteve uma visão cooperativa, muitos interesses pesados se chocaram com as soberanias nacionais. E há uma preocupação com a militarização de certos conflitos na região como na Colômbia, o Plano Colômbia. Existe um temor dos setores autonomistas da América do Sul de que a presença dos EUA seja nociva ao desenvolvimento nacional. Trata-se de uma questão histórica, permanente, no intuito de zelar para que a América Latina não passe por crises como a que passou a região dos Balcãs, onde houve intervenções de todos os lados. Ante um império na fronteira, os Estados menores têm tendência de não se subordinar e construir um espaço próprio. É uma lógica do sistema internacional e creio que o Mercosul – como é econômico e político-estratégico – também tem essa preocupação.

- E o Paraguai?

- Países menores às vezes tentam barganhar melhoras nas ofertas do bloco via aproximação com os Estados Unidos. O próprio Uruguai já utilizou desse expediente com os acordos financeiros – não com o presidente atual, Tabaré Vázquez. Sempre insisto que a política internacional se move por barganhas, trocas e entendimentos acoplados aos interesses de longo prazo dos Estados nacionais. Isso ainda não deixou de existir nas relações internacionais. Houve muitas análises segundo as quais, com o avanço do liberalismo da década de 1990 na América Latina, era só acompanhar as reformas do capitalismo global que tudo se resolveria com uma certa bonança internacional.

- E tudo se resolveu?

- Não. A abertura dos anos 90, o 11 de setembro, a crise da Organização Mundial do Comércio, a guerra do Iraque, as dificuldades da América Latina em superar suas velhas questões sociais, tudo isso levou a um realismo político maior. As resistências de Argentina, Brasil e Venezuela à influência externa mostra um certo cuidado estratégico com a região. Afinal, não temos interesse de que nossos netos e bisnetos venham apenas a exercer um papel de cidadãos de segunda categoria. Queremos construir um país civilizado que, além de cumprir com seu esforço de inclusão social e igualdade, seja dotado também de uma capacidade decisória para defender o emprego, a autonomia, suas empresas, capacidade política de construir uma estabilidade democrática sem intervenções.

Daí a importância de cuidar para que países vizinhos não abram espaço para intervenções ou experiências de militarização estrangeira. Ou alguém acha que agradam a Vladimir Putin as bases dos Estados Unidos na Tchetchênia? Ali, a tensão é permanente ali, há uma presença militar estrangeira. Essas questões de defesa militar são antigas, tiveram presença forte na Europa e na Ásia, durante a Guerra Fria. E por que aqui não? Porque o quintal do Sul era um ambiente relativamente calmo do ponto de vista das questões geopolíticas.

Quem é

José Flávio Sombra Saraiva é professor de História das Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). Tem pós-doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de Oxford (Inglaterra). É autor de diversos livros, entre eles Política externa e regimes políticos: história e teoria (Ibri, 2003).

O Mercosul

O Mercado Comum do Sul (Mercosul) surgiu em março de 1991com Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, a partir da assinatura do Tratado de Assunção, que criava uma zona de livre-comércio no Cone Sul do continente. Depois, em dezembro de 1994, os mesmos países assinaram o Protocolo de Ouro Preto reconhecendo a personalidade jurídica de direito internacional do bloco – o que permite negociações conjuntas com terceiros países, outros grupos de nações e organizações internacionais.

Lentamente, a pauta do Mercosul avançou além dos interesses comerciais (a discussão de redução de tarifas, por exemplo), assumindo também posições políticas comuns no campo diplomático, como nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A questão dos direitos sociais e da cidadania, no entanto, pouco se fez presente na breve história do bloco de países sul-americanos.

População: 225 milhões de pessoas
- PIB: 642 bilhões de dólares
- Área: 11,8 milhões de km²
- Desemprego: 10,9%

Venezuela

- População: 26 milhões de pessoas
- PIB: 130 bilhões de dólares
- Área: 912.050 km²
- Desemprego: 15% (números oficiais de dezembro de 2003)