Muito aprendi. Algumas lições trago de berço. Meu avô e meu pai também serviram em palácios do governo.

A pessoa revestida de poder qualuer um, de síndico ou gerente, policial ou político deveria dar ouvidos ao que dela dizem seus subalternos. Vox populi. Mas não é o que acontece em geral. Prestamos mais atenção ao juízo dos pares e superiores, em busca de reconhecimento de quem tem ppoder de ampliar o nosso poder.

Assim, sobre os subalternos desaba aquele nosso outro lado perverso que tanto esmeramos em esconder aos olhos de nossos pares e superiores. Todavia, cavalo indomado, se não somos contidos pelas rédeas da boa educação, ai ds subalternos! Quem está por cima tem o poder de adverti-los, censurá-los, puni-los ou demiti-los. Como não nos ameaçam, deixamos extravasar o demônio que nos habita. Desarrazoados, elevamos a voz, humilhamos, xingamos, repreendemos, e por pouco não avançamos para cobrir a vítima de sopapos.

Dê à pessoa uma fatia de poder e saberá quem de fato ela é. O poder, ao contrário do que se diz, não muda as pessoas. Faz com que se revelem. É como o artista a quem faltavam pincel, tintas e tela, ou o assassino que, afinal, dispõe de arma. O poder sobe à cabeça quando já se encontrava destilado, em repouso, no coração. Como o álcool, embriaga e, por vezes, faz delirar, excita a agressividade, derruba escrúpulos. Uma vez investida da função ou cargo, título ou prebenda, a pessoa se crê superior e não admite que subalternos contrariem sua vontade, suas opiniões, suas idéias e seus caprichos.

Na falta de uma psicologia do poder mais sistemática, à qual não faltam as valiosas contribuições de Adler e Reich, recorrro aos clássicos da literatura. Desde a Bíblia, destacando-se os livros do Pentateuco, às obras de Shakespeare, Kafka e o nosso Machado de Assis.

O dramaturgo inglês bem retrata as ambições e as intrigas do poder. O autor de A metamorfose revela a sua fce opressiva, a arrogância, o modo como tende a anular a dignidade do cidadão comum. E Machado de Assis não faz por menos, embora com mais sutileza, porém incisivo.

Leia-se o conto O espelho. Ali, um tratado completo de patologia do poder. O jovem Jacobina, de origem pobre, é nomeado alferes. Descobre, pois, que “cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora; outra que olha de fora para dentro.” (...) “Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; ‹ e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor etc.”

Recolhido à fazenda da tia, Jacobina se espanta por todos o tratarem de “senhor alferes” (o que me faz recordar que, no Planalto, todos são chamados de “doutor” ou “doutora”, ainda que o funcionário nunca tenha pisado uma faculdade). Sua “alma exterior” anula a “interior”. Jacobina só se dá conta da aberração quando se vê a sós na propriedade. Não é a solidão que o assusta. É a própria insignificância. Havia se acostumado a se olhar apenas de fora para dentro. Até que, uniformizado, contempla-se no espelho. Recupera então a auto-estima, o orgulho, a “alma exterior” que lhe despersonalizara, castrando-lhe a verdadeira identidade.

Nem todos que ocupam poder deixam que a “alma exterior” prevaleça sobre a “interior”. Esses fazem do poder serviço e não temem o juízo de seus subalternos, nem mesmo críticas. Pois sabem que somos todos feitos de barro e sopro, e o que importa na vida é a bagagem subjetiva, não os adereços objetivos.

Sem o talento de Machado de Assis, porém inspirado em seu poema A mosca azul, ousei levar ao papel minha reflexão sobre o poder. Resultou no livro A mosca azul", que a editora Rocco faz chegar este mês às livrarias. Meus dois anos no governo Lula me estimularam a partilhar com os leitores meu ponto de vista a partir de um ponto o Palácio do Planalto, coração do poder.