CARACAS - O assessor especial de política externa da Presidência da República, o gaúcho Marco Aurélio Garcia, 64, é um conversador de primeira. Por horas a fio, é capaz de discorrer sobre intrincadas negociações internacionais com a mesma desenvoltura com que comenta uma de suas paixões, o cinema. Formado em direito e filosofia e pós-graduado na Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais de Paris, Marco Aurélio é professor licenciado do Departamento de História da Unicamp. Por mais de dez anos foi Secretário de Relações Internacionais do PT, além de ser um dos coordenadores do programa de governo do presidente Lula.

Nessa entrevista, concedida no último domingo (28), em Caracas, Marco Aurélio avalia o desempenho da política externa do governo, os problemas com a Bolívia, a liderança de Hugo Chávez e o Mercosul. Abaixo, a primeira parte da conversa.

Carta Maior – Que avaliação o senhor faz da política externa do governo Lula?
Marco Aurélio Garcia – Acho bom o desempenho na área internacional. Nosso objetivo fundamental era articular a América do Sul, num primeiro momento, para criar uma solidariedade regional. Numa conjuntura adversa, tentamos mudar a correlação de forças internacional. Pode parecer pretensioso, mas ou se aceita passivamente a correlação de forças, ou se tenta alterá-la. Nós interviemos para mudar significativamente a região. Penso que tivemos sucesso. Hoje há um grande número de governos de esquerda e de centro esquerda que, embora distintos entre si, buscam pontos de convergência. Mesmo administrações mais conservadoras foram empurradas para essa diretriz geral de unidade sul-americana.

- Mas não tem sido uma rota tranqüila.

- É verdade. Tivemos uma série de acidentes localizados que não ajudam o processo de integração. Os exemplos são visíveis: o conflito entre Uruguai e Argentina sobre as papeleiras, a saída do mar para a Bolívia, que envolve Chile e Peru, estes dois tiveram um choque também com a definição do mar territorial. Em seguida aconteceu esse processo de desintegração da Comunidade Andina de Nações, seja pelo fato de que dois de seus países assinaram tratados de livre comércio com os EUA, seja porque a Venezuela ingressou no Mercosul. Somado a isso, houve um contencioso, a meu ver totalmente desnecessário, entre o Brasil e a Bolívia, por conta de algumas posições tomadas pelo governo deste país. Por fim, há o fato de que o Uruguai e o Paraguai estariam propensos a estabelecer tratados de livre comércio com os EUA. Aqui há um problema real enfrentado pelo Mercosul, que é o das assimetrias. Se limitarmos o Mercosul a uma simples integração aduaneira, os países de economia menor não verão vantagens. Com a Argentina chegamos a uma boa solução através da assinatura da cláusula de adaptação competitiva nos acordos.

- O que o governo planeja com o Mercosul em meio a tais problemas?

- Desde antes do governo Lula, nós falamos num Mercosul ampliado, que não seja apenas uma integração comercial. Ele precisaria avançar em direção a uma articulação econômica, que inclua políticas industriais, agrícolas, sociais e culturais comuns. Para isso, serão necessárias instituições conjuntas, como um parlamento do Mercosul. Quando a imprensa – especialmente o jornal “O Estado de S. Paulo” – fala em “fracasso do Mercosul”, ela não se dá conta de que nós tivemos, além da Bolívia e Chile, a adesão da Venezuela, da Colômbia, do Equador, do Peru e pedidos do México e de Cuba para se associarem. Ampliou-se muito a relação comercial. Mas, repito, nós não queremos reduzir a integração a isso. Quando o Peru ingressou, o próprio presidente Alejandro Toledo falou: “Nós estamos dando um grande passo na constituição de uma comunidade sul-americana de nações”.

Como se integrar em outros âmbitos, além do comercial?

- Há na América do Sul quatro regimes comerciais. Falo de há seis meses atrás; hoje eu não sei mais o que há. Havia o Mercosul, a Comunidade Andina de Nações, o Caricom (Mercado Comum e Comunidade do Caribe) e o Chile, com um tratado de livre-comércio com os EUA, a China, a União Européia etc. Quando projetamos a Comunidade Sul Americana de Nações, não tínhamos em mente resolver outos problemas além dos comerciais. Um deles é o da infra-estrutura física. Com vários países da América do Sul nós não tínhamos ligações físicas. Hoje há um grande número de pontes, estradas etc. Isso foi se fazendo com Paraguai, Uruguai, Bolívia etc. e muitas dessas obras têm financiamento brasileiro. Avançamos na questão energética, que teve como primeiro eixo Argentina, Brasil e Venezuela, através da constituição da Petrosul. Ela não é uma empresa de petróleo, mas um consórcio entre companhias nacionais. Disso nasceu o Gasoduto do Sul, cujos estudos encontram-se em estágio avançado. Além disso, há um empenho grande por parte do Brasil na questão das energias renováveis. Como pano de fundo, há propostas de complementariedade produtiva. Discutimos recentemente como alguns projetos podem beneficiar vários países, em pelo menos três áreas. A primeira delas é a indústria naval, que conheceu uma forte expansão no Brasil, nos últimos anos. Ela poderia se beneficiar muito das encomendas da Petrobras, da PDVSA e da estatal Argentina, que está em processo de reconstrução. A idéia é que plataformas, navios e outros equipamentos tenham sua demanda compartilhada. Isso significa encomendas gigantescas, da ordem inicial de dez bilhões de dólares. Os diferentes países, a exemplo do que acontece com a indústria aeronáutica na Europa, poderiam participar desse esforço produtivo. O Airbus é fabricado por partes na França, na Bélgica, na Alemanha etc.

Por falar em aviões, como ficou o caso da proibição,
por parte dos EUA, da venda dos aviões da Embraer para a Venezuela?

- Nem todos os canais diplomáticos estão esgotados. Tivemos uma atitude de protesto. O Lula mencionou o caso para o presidente Bush, o chanceler Celso Amorim mandou carta para Condoleezza Rice etc. A Venezuela não está sofrendo nenhum tipo de sanção internacional. A Embraer é uma empresa privada e tem seus interesses nos EUA e nós fizemos a parte que o Estado pode fazer. O ridículo do embargo norte-americano é os fornecedores de lá não vêem problemas na venda. Não houve nenhuma aresta com o governo venezuelano.

A Venezuela, juntamente com Cuba e Bolívia, busca fazer uma integração através da Alternativa Bolivariana das Américas (Alba). Como isso se articula com o Mercosul?

- Do ponto de vista comercial, a Alba não é relevante. É um projeto político ideológico muito preciso. Ela nunca foi proposta ao Brasil. Eu participei de todas as negociações políticas com o governo venezuelano e este assunto sequer foi levantado. A Alba é muito mais um desígnio geral. Se quisermos tomar uma imagem gastronômica, a Alba não é um bife, é o molho. O Mercosul tem uma densidade maior, por contemplar políticas comerciais, econômicas etc. O que escapar do Mercosul, ficará para a Comunidade Sul Americana de Nações, que é nosso objetivo mais geral. Ela não terá um regime comercial único, como a Europa. A idéia é a partir desse mês iniciarmos a confecção de um projeto dessa comunidade, para entregarmos aos presidentes até o fim o ano.

O presidente Hugo Chávez tem desenvolvido uma política externa ousada e agressiva, fazendo acordos e contratos com inúmeros países. Lula perdeu a liderança continental para ele?

- Em primeiro lugar, o Brasil nunca reivindicou liderança alguma. Queremos uma política de unidade. Acho que hoje, os países da região reconhecem a importância do Brasil, pois mantemos excelente diálogo com todos os governantes, de Chávez (Venezuela) a Uribe (Colômbia). A Comunidade Sul Americana tem de ser um valor maior. O que Chávez ganhou foi a liderança num certo segmento de esquerda. Há todo um setor com valores nacionalistas e antiimperialistas que se sente interpelado pela mensagem de Chávez. A aliança que temos com ele é de natureza geopolítica.

Em algum momento, a contundência verbal de Chávez constrangeu o Brasil?

– Não acho bom termos, em determinados momentos, um clima de guerra fria na região. Sei que o contencioso entre a Venezuela e os EUA envolve responsabilidades recíprocas. Não quero dizer quem tem mais razões. Da mesma maneira que condenamos o governo norte-americano – e o Lula o fez diretamente ao Bush – nós temos muita franqueza em discutir isso com o governo Chávez. Ajudaria muito se baixássemos um pouco o tom entre os países.

Como o sr. vê a nacionalização do gás boliviano?

- Eles fizeram o que todos os países do mundo fazem. Para nós não houve surpresa alguma na nacionalização. Isso já havia sido aprovado em plebiscito. Acompanhamos a Bolívia há tempos. Eu estive, como enviado dos presidentes Lula e Kirchner no dia da queda do ex-presidente Sanchez de Lozada, em 2003. A imprensa boliviana me apontou como um dos responsáveis pela queda, o que não é verdade. Cheguei lá com Eduardo Sguiglia, da chancelaria Argentina, e fomos diretos para a casa de Lozada. Ele nos fez uma análise extremamente lúcida da situação. A única coisa não lúcida era ele se achar a solução da crise. A conversa foi muito simpática, mas ele queria que aparecêssemos como uma missão de apoio a ele. Deixamos claro, através de uma nota, não ser essa a idéia, era uma missão de observação. Eu lhe falei: a posição de nossos governos é que se continuar a repressão e a matança, o apoio internacional ao seu governo ficará insustentável. Duas horas depois ele renunciou, não por nossa nota, mas pela acelerada perda de apoio interno. Passado esse momento, o Lula encontrou-se com o Evo e eu mesmo fui várias vezes à Bolívia em momentos de crise. A Petrobras nunca contestou a Lei de Hidrocarbonetos. Estivemos lá na eleição e na posse e a única coisa que pedimos a Evo Morales é que não houvessem negociações pela imprensa. Quando se diz que Evo desestabilizou a Bolívia, eu contesto. Se não fosse ele a cumprir suas promessas de campanha, a Bolívia estaria em chamas. O Evo é fator de estabilidade. No entanto, eu acho que determinadas atitudes não correspondem ao tipo de tratamento dispensado à Bolívia pelo Brasil. Isso nos criou problemas.

Que tipo de problemas?

- A entrevista do Evo em Viena foi muito ruim, tanto que ele teve de se desdizer, no dia seguinte. Algumas declarações do Ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, Andres Soliz Rada, não se justificam para um país amigo e presidido por alguém que sempre teve boas relações com Evo Morales. Houve um desacerto. O uso de tropas para cercar as refinarias foi outra medida desnecessária. O próprio Evo depois disse “Olha, eu tenho pouca experiência” e tal. A gravidade da ação se deu, sobretudo, por ter acontecido alguns dias depois da reunião de Foz do Iguaçu, onde os quatro presidentes – Lula, Chávez, Evo e Kirchner - acertaram uma conduta comum, inclusive cm um programa de auxílio à Bolívia. Eu há pouco conversei com o Ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Ali Rodríguez. Ele me dizia que a retomada do petróleo em seu país não precisou de nada além de um ato administrativo normal.

Como foi a conversa entre Lula e Evo Morales, em Viena, depois a nacionalização?

- Lula começou dizendo “Olha, quem está aqui não é o presidente brasileiro e o presidente boliviano, mas dois companheiros sindicalistas guindados à condição de presidentes e que têm um passado comum”. A partir daí houve um entendimento e a situação melhorou. Agora, a reação no Brasil, de parte da imprensa e de alguns ex-diplomatas, inscreve-se na disputa eleitoral e está tisnada de conservadorismo. Atacou-se o “populismo” e o “nacionalismo” da nacionalização. Pode-se até discutir esses conceitos. Mas não tenho dúvidas de que o discurso anti-populista e anti-nacionalista é profundamente conservador e preconceituoso. Alguns colunistas chegaram a valer-se de conceitos claramente racistas

Fonte
Carta Maior (Brasil)
Agência de notícias