Para justificar o apartheid na Palestina e a guerra israelense contra o povo palestino, a imprensa norte-americana recorre à técnica clássica das lendas negras. Por força de repetição mentirosa se forma a idéia de que existiria um complô islâmico mundial dispondo de um plano global que se poderia chamar de "Os Protocolos dos Sábios do Islã", em referência a "Os Protocolos dos Sábios de Sião", manifesto falsamente atribuído aos judeus, e difundido pela polícia czarista [4] . O filósofo e historiador italiano, Domenico Losurdo, analisa aqui este ardil propagandístico à luz de algumas referências históricas.
Ao sondar na Internet as reações ao meu último livro, Stalin, Storia e critica di una leggenda nera (Stalin, História e crítica de uma lenda negra) [5] , pude perceber que, ao lado de comentários largamente positivos, aparecem alguns sinais de incredulidade: é então possível que as infâmias atribuídas a Stalin e acreditadas por um consenso geral sejam no mais das vezes resultantes de distorções ou mesmo de verdadeiras falsificações históricas?
É a estes leitores em particular que eu gostaria de sugerir uma reflexão a partir dos eventos atuais. Todos temos diante dos olhos a tragédia do povo palestino em Gaza, primeiramente privado de alimentos pelo bloqueio, e agora invadido e massacrado pela terrível máquina de guerra israelense. Vejamos como reagem os grandes meios de "informação". No jornal Corriere della Sera de 29 de dezembro, o editorial de Piero Ostellino sentencia: "O artigo 7 da Carta do Hamas não defende somente a destruição de Israel, mas a exterminação dos judeus, como afirma o presidente iraniano Ahmadinejad". Notar-se-á que, embora faça uma afirmação extremamente grave, o jornalista não apresenta nenhuma citação textual: ele exige que suas palavras, e somente elas, bastem para que se acredite naquilo que diz. [6]
No mesmo jornal, alguns dias depois (3 de janeiro), Ernesto Galli della Logia reincide nesta interpretação. Na verdade, este não mais se refere a Ahmadinejad. Talvez ele se tenha apercebido do equívoco de seu colega. Após Israel, o Irã é o país do Oriente Próximo que mais abriga judeus (20 mil), e estes não parecem sofrer perseguições. Em todo caso, os palestinos dos territórios ocupados não poderiam senão invejar a sorte dos judeus que vivem no Irã, os quais não somente não foram exterminados, como também não precisam enfrentar a ameaça de "transferência" que os sionistas mais radicais fazem cair sobre os árabes israelenses.
Evidentemente, Galli della Loggia examina tais questões de modo muito superficial. Se é bem verdade que o articulista não faz menção a Ahmadinejad, por outro lado, ele chega a ir mais longe que Ostellino nas acusações ao Hamas. Segundo suas palavras, o Hamas não se limita a exigir a "exterminação dos judeus" israelenses, como afirmou seu colega. É preciso não parar a meio-caminho na denunciação dos planos malévolos destes bárbaros: "o Hamas deseja a eliminação de todos os judeus da face da terra" ( Corriere della Sera, 3 de janeiro). Também neste caso, a afirmação carece inteiramente de provas: o rigor científico é a última preocupação de Galli della Loggia, de quem é preciso, por outro lado, reconhecer a coragem de desafiar o ridículo: segundo suas análises, os "terrorristas" palestinos se propõem não somente a liquidar a máquina de guerra de Israel, mas também a dos Estados Unidos, para por fim chegarmos à mais grave das infâmias das quais o editorialista do Corriere della Sera denuncia a amplitude planetária. Aliás, aqueles que são capazes de infligir uma derrota decisiva à superpotência mundial, podem, mais do que de Israel, aspirar à dominação do mundo. Enfim, é como se Galli trouxesse finalmente à luz "Os Protocolos dos Sábios do Islã".
Deste modo, "Os Protocolos dos Sábios do Islã", assim como, em sua época, "Os Protocolos dos Sábios de Sião", adquirem a partir de então valor de verdade comprovada, e não necessitam nenhuma demonstração. Em La Stampa de 5 de janeiro, Enzo Bettiza determina imediatamente o significado dos bombardeios massivos de Israel, lançados por céu, mar e terra, com recursos aliás a armas interditas pelas convenções internacionais, contra uma população substancialmente sem defesas: "É uma operação de autodefesa drástica e muito violenta, e a qual recorre um país ameaçado de exterminação por uma seita que jurou extirpá-lo da face da terra".
Esta tese, repetida à obsessão, se inscreve no quadro de uma tradição bem precisa. Entre os séculos XVIII e XIX, padre Gregório, um clérigo moderado, lutava pela abolição da escravidão nas colônias francesas: ele foi então taxado de liderar os "brancófagos", esses negros bárbaros e ávidos de se alimentar da carne dos homens brancos. Alguns decênios mais tarde, algo similar se passou nos Estados Unidos da América: os abolicionistas, em sua maioria de fé cristã e orientação não-violenta, exigiam "a destruição completa do sistema escravocrata", e foram prontamente acusados de querer exterminar a raça branca. Ainda na metade do século XIX, na África do Sul, os defensores do apartheid negaram direitos políticos aos negros, com o argumento de que um eventual governo negro significaria a exterminação sistemática dos colonos brancos e dos brancos em sua totalidade.
A lenda negra em voga nos nossos dias é particularmente ridícula: o Hamas, por várias vezes, apontou para a possibilidade de haver um acordo, caso Israel aceitasse um retorno às fronteiras de 67. Como todos sabem ou deveriam saber, o que torna mais e mais problemática a possibilidade de uma solução para os dois Estados, e talvez a partir de agora impossível, é a expansão ininterrupta das colônias israelenses nos territórios ocupados. Entretanto, a substituição do atual Estado de Israel enquanto "Estado dos judeus" por um Estado binacional que, ao garantir igualdade a todos, seja ao mesmo tempo dos judeus e dos palestinos, não significaria de modo algum a exterminação dos judeus, da mesma forma como a destruição do Estado racial branco, no sul dos Estados Unidos e posteriormente na África do Sul, decerto não resultou na aniquilação dos brancos. Na realidade, aqueles que desfraldam, de uma maneira ou de outra, "Os Protocolos dos Sábios do Islã" querem transformar as vítimas em algozes e os algozes em vítimas.
Não menos grotescas e não menos tendenciosas são hoje as mitologias em voga sobre Stalin e o movimento comunista em sua totalidade. Exemplo disso é a tese segundo a qual a União Soviética teria imposto um "holocausto da fome" ou "fome terrorista" ao povo ucraniano nos anos 30. Em sustento desta tese não existe e nunca foi aduzida nenhuma prova. [7]
Porém, o que há de mais essencial nisso tudo é uma outra questão. A lenda negra difundida de modo planificado sobretudo na época de Reagan e durante a Guerra Fria serve para esconder o fato de que a "fome terrorista" pela qual se censura Stalin, foi desde séculos levada a termo pelo Ocidente liberal e, particularmente, contra os povos já colonizados ou contra aqueles que se queria reduzir a condições coloniais ou semi-coloniais.
Tentei demonstrar tais fatos no meu livro. Imediatamente após a grande Revolução negra que, no fim do século XVIII em São Domingos/Haiti, rompeu ao mesmo tempo os grilhões da dominação colonial e aqueles do sistema escravocrata, a resposta dos Estados Unidos veio em conformidade com as declarações de Thomas Jefferson, segundo as quais dever-se-ia reduzir à fome ( starvation ) o país que havia tido a impudência de abolir a escravidão. O mesmo comportamento foi adotado no século XIX. E, após Outubro de 1917, Herbert Hoover, na época alto representante da administração Wilson, então presidente dos Estados Unidos, levantava de modo explícito a ameaça de "fome absoluta" e "morte por inanição" não somente contra a Rússia soviética, mas contra todos os povos que se deixassem contaminar pela Revolução bolchevique. No começo dos anos 60, um colaborador da administração Kennedy, Walt W. Rostow, se vangloriava do fato de que os Estados Unidos haviam chegado a retardar por "dezenas de anos" o desenvolvimento econômico da República Popular da China!
Tal política ainda hoje permanece: todos sabem que o imperialismo tenta estrangular economicamente Cuba, e, se possível, reduzi-la à condição de Gaza, onde os opressores, antes mesmo dos bombardeios terroristas, já podiam exercer seu poder de vida e morte através do controle dos recursos vitais.
Feitas estas considerações, podemos então voltar à Palestina. Antes de sofrer o horror que sofre hoje, o povo de Gaza foi combatido por uma política prolongada que tentava privá-los de medicamentos e luz elétrica, reduzi-los à fome e à sede, e, por fim, ao esgotamento e ao desespero. Apesar da "trégua" que havia sido estabelecida, o governo de Tel Aviv, como de hábito, arrogou-se o direito de proceder às execuções extrajudiciais de seus inimigos. Cumpre ressaltar que, antes mesmo de ser invadida por um exército que mais parece um pelotão de execução gigantesco e experiente, Gaza já era objeto de uma política de agressão e de guerra. Ao mesmo tempo, a mídia, sobretudo no Ocidente, esforça-se por aniquilar toda resistência crítica à tese falsa e mentirosa segundo a qual Israel estaria engajado em uma operação de autodefesa: que ninguém ouse duvidar da autenticidade dos "Protocolos dos Sábios do Islã"!
Eis então como se constroem as lendas negras: esta de hoje sela a tragédia do povo palestino (o povo mártir, por excelência, de nossa época), assim como aquelas que, ao retratar Stalin como um monstro e reduzir ao estatuto de crime o processo que começou com a Revolução de Outubro, pretendem privar os povos oprimidos de toda esperança e perspectiva de emancipação.
[1] Os "Protocolos dos Sábios de Sião" foi um falso manifesto em que os judeus conspirariam para a dominação mundial, forjado pela polícia czarista como estratégia política. O Czar Nicolau II, sentindo-se ameaçado pelo Manifesto Comunista, de Marx e Engels, de 1848, aproveitou-se do fato de que Marx era judeu, para fazer com que o comunismo fosse encarado como uma tentativa de dominação mundial. Entretanto, como se sabe, Marx renegava o judaísmo e todas as outras religiões, reputando-as alienantes.
[2] Os "Protocolos dos Sábios de Sião" foi um falso manifesto em que os judeus conspirariam para a dominação mundial, forjado pela polícia czarista como estratégia política. O Czar Nicolau II, sentindo-se ameaçado pelo Manifesto Comunista, de Marx e Engels, de 1848, aproveitou-se do fato de que Marx era judeu, para fazer com que o comunismo fosse encarado como uma tentativa de dominação mundial. Entretanto, como se sabe, Marx renegava o judaísmo e todas as outras religiões, reputando-as alienantes.
[3] Os "Protocolos dos Sábios de Sião" foi um falso manifesto em que os judeus conspirariam para a dominação mundial, forjado pela polícia czarista como estratégia política. O Czar Nicolau II, sentindo-se ameaçado pelo Manifesto Comunista, de Marx e Engels, de 1848, aproveitou-se do fato de que Marx era judeu, para fazer com que o comunismo fosse encarado como uma tentativa de dominação mundial. Entretanto, como se sabe, Marx renegava o judaísmo e todas as outras religiões, reputando-as alienantes.
[4] Os "Protocolos dos Sábios de Sião" foi um falso manifesto em que os judeus conspirariam para a dominação mundial, forjado pela polícia czarista como estratégia política. O Czar Nicolau II, sentindo-se ameaçado pelo Manifesto Comunista, de Marx e Engels, de 1848, aproveitou-se do fato de que Marx era judeu, para fazer com que o comunismo fosse encarado como uma tentativa de dominação mundial. Entretanto, como se sabe, Marx renegava o judaísmo e todas as outras religiões, reputando-as alienantes.
[5] "Stalin. Storia e critica di una leggenda nera", Domenico Losurno, com um ensaio de Luciano Canfora, Ed. Carocci , 2008, 384 pp.
[6] - Sobre a posição real do Hamas, leia-se a entrevista que seu porta-voz Moshir al-Masri nos concedeu: "Quel est le programme politique du Hamas aujourd’hui?" , conversa transcrita por Silvia Cattori, Réseau Voltaire, 20 de janeiro de 2006.
– Sobre a posição real do presidente Ahmadinejad, leia-se: "Comment Reuters a participé à une campagne de propagande contre l’Iran" , Réseau Voltaire, 14 de novembro de 2005. Para aprofundar esta questão, leia-se o capítulo "Diaboliser l’Iran", da obra L’Effroyable imposture 2, Manipulations et désinformations , de Thierry Meyssan, Ed. Jean-Paul Bertrand, 2008, 398 pp.
[7] Sobre a lenda negra do "holocausto da fome na Ucrânia", leia-se o artigo de referência "La Famine en Ukraine en 1933: une campagne allemande, polonaise et vaticane", de Annie Lacroiz-Riz, 2004.
Permaneçam em Contacto
Sigam-nos nas Redes Sociais
Subscribe to weekly newsletter