Em 2001, alegando responder aos atentados do 11-de-Setembro, o Presidente George W. Bush lançou uma «longa guerra» contra o «Médio-Oriente Alargado»; uma guerra que prossegue ainda, dezassete anos mais tarde, na Síria e no Iémene. O seu Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, teoriza o conceito de guerra total, nomeadamente abolindo a distinção entre «civis» e «militares».

No texto precedente «Impérialisme contre super-impérialisme» (Imperialismo versus super-imperialismo) argumentáramos que, ao desindustrializar o país, o super-imperialismo norte-americano havia enfraquecido o poderio dos EUA enquanto nação [1]. O projecto inicial da Administração Trump era proceder a uma reconstrução económica através de uma base protecionista. Dois campos enfrentam-se, o portador de um renascimento económico dos EUA e o que está a favor de um conflito militar cada vez mais aberto, opção que parece ser principalmente apoiada pelo Partido Democrata. A luta entre os Democratas e a maioria dos Republicanos, pode assim ser entendida como um conflito entre duas tendências do capitalismo norte-americano, entre a portadora da mundialização do capital e a que defende um relançamento do desenvolvimento industrial de um país economicamente em declínio.

Assim, para a Presidência Trump, o restabelecimento da competitividade da economia dos EUA é prioritário. A vontade da sua Administração de instalar um novo protecionismo deve ser lida como um acto político, uma ruptura no processo de mundialização do capital, quer dizer, como uma decisão de excepção, no sentido desenvolvido por Carl Schmitt: «é soberano aquele que decide sobre a situação excepcional» [2]. Aqui, a decisão aparece como uma tentativa de rotura com a norma da transnacionalização do capital, como um acto de restabelecimento da soberania nacional dos EUA face à estrutura imperial organizada em torno dos Estados Unidos.

O regresso do político

A tentativa da Administração Trump coloca-se como uma excepção à mundialização do capitalismo. Mostra-se como uma tentativa de restabelecer a primazia do político, em seguida à constatação de que os EUA já não são mais a superpotência económica e militar, cujos interesses se confundem com a internacionalização do capital.

O regresso do político traduz-se, em primeiro lugar, pela vontade de por em prática uma política económica nacional, de reforçar a actividade no território norte-americano, graças a uma reforma tributária destinada a restabelecer os termos do comércio entre os Estados Unidos e os seus concorrentes. Actualmente, esses termos degradaram-se nitidamente em desfavor dos EUA. Assim, o défice comercial total dos EUA aumentou 12,1% em 2017 e sobe a US $ 566 mil milhões (bilhões-br) de dólares. Subtraindo o superavit do país em serviços, para focarmos apenas o comércio de bens, o saldo negativo atinge mesmo US $ 796,1 mil milhões de dólares. É evidentemente com a China que o défice é o mais esmagador : atingiu, em 2017, o nível recorde de 375,2 mil milhões de dólares apenas para mercadorias [3].

A luta contra o défice do comércio externo permanece central na política económica da Administração dos EUA. Impedida pelas duas Câmaras da sua reforma económica fundamental, o Border Adjusment Tax [4], destinado a promover um relançamento económico graças a uma política proteccionista, a Administração Trump tenta reequilibrar o comércio caso a caso, por ações bilaterais, exercendo pressões sobre os seus vários parceiros económicos, principalmente a China, afim de que eles reduzam as suas exportações para os EUA e que aumentem as importações de mercadorias norte-americanas. Para o conseguir, importantes negociações acabam de ter lugar. A 20 de Maio, Washington e Pequim anunciaram um acordo destinado a reduzir de maneira significativa o défice comercial dos EUA em relação à China [5]. A Administração Trump reclamava uma redução de US $ 200 mil milhões de dólares do excedente comercial chinês, assim como tarifas aduaneiras mais baixas. Trump tinha ameaçado impor tarifas aduaneiras de US $ 150 mil milhões de dólares sobre importações de produtos chineses e, como medida de retaliação, a China propunha-se ripostar visando as exportações dos EUA, nomeadamente na soja e na aeronáutica.

Oposição estratégica entre Democratas e Republicanos

Globalmente, a oposição entre a maioria do Partido Republicano e os Democratas repousa no antagonismo de duas visões estratégicas, tanto a nível económico como militar. Estes dois aspectos estão intimamente ligados.

Para a Administração Trump, a recuperação económica é central. A questão militar põe-se em termos de apoio a uma política económica proteccionista, como um momento táctico de uma estratégia de desenvolvimento económico. Essa táctica consiste em desenvolver conflitos locais, destinados a frenar o desenvolvimento de nações concorrentes, e a afundar projectos globais opostos à estrutura imperial dos EUA, tais como, por exemplo, o da nova Rota da Seda, uma série de «corredores» ferroviários e marítimos devendo ligar a China à Europa, associando a Rússia. Os níveis, económico e militar, estão estreitamente ligados, mas, contrariamente à posição dos Democratas, permanecem distintos. O objectivo económico não é confundido com os meios militares implementados. Aqui, a recuperação económica da nação norte-americana é a condição que permitirá evitar ou, pelo menos, postergar um conflito global. A possibilidade de desencadear uma guerra total torna-se um meio de pressão destinado a impor as novas condições norte-americanas dos termos de troca com os parceiros económicos. A alternativa que se oferece aos competidores é a de permitir aos EUA reconstituir as suas capacidades ofensivas ao nível das forças produtivas ou de ser envolvido rapidamente numa guerra total.

A distinção, entre objectivos e meios, presente e futuro, já não aparece na abordagem dos Democratas. Aqui, os momentos estratégico e tático são misturados. A fusão total destes dois aspectos é característica do esquema de «guerra total», de uma guerra livre de qualquer controle político e que apenas obedece as suas próprias leis, as da «ascenção aos extremos».

A 18 de Fevereiro de 1943, no Palácio dos Desportos de Berlim, Joseph Goebbels proclama a «guerra total». Face aos revezes militares (a derrota de Estalinegrado), todas as forças da nação alemã, sem excepção, deverão ser postas em acção para vencer o bolchevismo, portador da ditadura judia.

Em direcção a uma guerra «absoluta» ?

A consequência da capacidade do Partido Democrata em bloquear um relançamento interno nos EUA é que, se os EUA renunciam a desenvolver-se, o único objectivo que resta será o de impedir, por todos os meios, entre os quais a guerra, os concorrentes e os adversários de o fazer. No entanto, o cenário já não é mais o das guerras limitadas da era Bush ou Obama, de uma agressão contra potências médias já enfraquecidas, tais como o Iraque, mas, antes o da «guerra total», tal como foi pensada pelo teórico alemão Carl Schmitt, quer dizer, um conflito que implica uma mobilização completa dos recursos económicos e sociais do país, tal como os de 14-18 e 40-45.

Entretanto, a guerra total, pela existência da arma nuclear, pode adquirir uma nova dimensão, a da noção, desenvolvida por Clausewitz, de «guerra absoluta».

Para Clausewitz, a «guerra absoluta» é a guerra em conformidade com o seu conceito. Ela é a vontade abstrata de destruir o inimigo, enquanto a «guerra real» [6] é a luta na sua realização concreta e a utilização limitada da violência para tal. Clausewitz opunha estas duas noções, porque a «escalada aos extremos», característica da guerra absoluta, só poderia ser uma ideia abstracta, servindo de referência para avaliar as guerras concretas. No quadro de um conflito nuclear, a guerra real torna-se conforme ao seu conceito. A «guerra absoluta» deixa seu estatuto de abstração normativa para se transformar numa realidade concreta.

Assim, como categoria de uma sociedade capitalista desenvolvida, a abstração da guerra absoluta funciona no concreto, transforma-se numa «abstração real» [7], quer dizer, uma abstração que já não pertence apenas ao processo de pensamento, mas que resulta igualmente do processo real da sociedade capitalista [8].

A "guerra absoluta" como "abstração real"

Tal como exprime o fenomenólogo marxista italiano Enzo Paci, «a característica fundamental do capitalismo ... reside na sua tendência a fazer existir categorias abstratas como categorias concretas» [9].

Assim, em 1857, nos Grundrisse (Fundamentais), Marx escrevia que «as abstrações mais gerais apenas nascem completamente com o mais rico desenvolvimento concreto ...»

Este processo de abstração do real não existe apenas através das categorias da «crítica da economia política», tais como foram teorizadas por Marx, como a do «trabalho abstracto», mas tem a ver com o conjunto da evolução da sociedade capitalista. Assim, a noção de «guerra absoluta» deixa, através das relações políticas e sociais contemporâneas, o terreno da própria abstração de pensamento para se tornar igualmente uma categoria adquirindo uma existência real. Ela já não encontra a sua função unicamente como um horizonte teórico, como «congeminação de pensamento», antes se torna uma realidade concreta. A guerra absoluta deixa então de ser um simples horizonte teórico, um limite conceptual, para se tornar um modo de existência, uma forma possível, efectiva, de hostilidade entre as nações.

Já, num artigo de 1937 «Inimigo total, guerra total e Estado total» [10], Carl Schmitt sugere que as evoluções técnicas e políticas contemporâneas produzem uma identidade entre a realidade da guerra e a própria ideia de hostilidade. Esta identificação leva a um subida dos antagonismos e culmina no «empurrão para o extremo» da violência. Significa, implicitamente, que a «guerra real» se torna conforme ao seu conceito, que a «guerra absoluta» deixa o seu status de abstração normativa para se concretizar sob a forma de «guerra total».

Então a relação guerra-política inverte-se, a guerra não é mais, tal como Clausewitz elaborava, para caracterizar a sua época histórica, a forma mais elevada da política e a sua momentânea conclusão. A guerra total, ao se tornar uma guerra absoluta, escapa ao cálculo político e ao controle estatal. Ela não se submete senão à sua própria lógica, ela «não obedece senão à sua própria gramática», a da ascensão aos extremos [11]. Assim, uma vez desencadeada, a guerra nuclear escapa à engrenagem dentada da decisão política, da mesma maneira que a mundialização do capital escapa ao contrôlo do Estado nacional, das organizações supra-nacionais e, mais genericamente, a qualquer forma de regulamentação.

Para Donald Trump, os exércitos dos EUA não existem para arrasar os Estados que não participam na globalização do capital, seja por escolha ou por necessidade, mas para ameaçar qualquer potência que trave a re-industrialização dos Estados Unidos.

Da «guerra contra o terrorismo» à «guerra absoluta»?

A 19 de Janeiro de 2018, falando na Universidade Johns Hopkins, em Maryland, o Secretário de Defesa Trump, James Mattis, revelou uma nova estratégia de Defesa Nacional baseada na possibilidade de um enfrentamento militar directo entre os Estados Unidos, a Rússia e a China [12]. Ele precisou que se tratava aqui de uma mudança histórica em relação à estratégia em vigor desde há duas décadas, a da guerra contra o terrorismo. Assim, concretizou :

«É a concorrência entre as grandes potências —e não o terrorismo— que é agora o principal objectivo da Segurança Nacional norte-americana».

Um documento desclassificado de 11 páginas, descrevendo a Estratégia de Defesa Nacional em termos gerais [13], foi remetido à imprensa. Uma versão confidencial mais longa, que inclui as propostas detalhadas do Pentágono para um aumento maciço das despesas militares, foi, essa, submetida ao Congresso [14]. A Casa Branca pede um aumento de US $ 54 mil milhões de dólares no orçamento militar, justificando-a pelo facto de que «hoje, saímos de um período de atrofia estratégica, conscientes do facto de que a nossa vantagem militar competitiva se erodiu» [15]. O documento prossegue : «A potência nuclear —a modernização da força de ataque nuclear implica o desenvolvimento de opções capazes de contrapor as estratégias coercivas dos concorrentes, baseadas na ameaça de recorrer a ataques estratégicos nucleares ou não-nucleares».

Para a Administração Trump, o após-Guerra Fria terminou. O período durante o qual os Estados Unidos podiam movimentar as suas forças quando quisessem, intervir como lhes apetecesse, já não é possível. «Hoje, todos os domínios são contestados : os ares, a terra, o mar, o espaço e o ciberespaço» [16].

«Guerra absoluta» ou guerra económica

A possibilidade de uma guerra dos EUA contra a Rússia e a China, quer dizer, o desencadear de uma guerra absoluta, faz parte das hipóteses estratégicas, tanto da administração norte-americana quanto dos analistas russos e chineses. Esta faculdade aparece como a matriz que sustenta e torna legível a política externa e as operações militares destes países, por exemplo a extrema prudência da Rússia, uma contenção que pode fazer pensar em indecisão ou recuo, em relação às provocações norte-americanas no território sírio. A dificuldade da posição russa não decorre tanto das suas próprias divisões internas, do equilíbrio de forças entre as tendências mundialista e nacionalista dentro do país, mas mais das divisões entre os norte-americanos balançando entre a guerra económica e a guerra nuclear. A articulação entre as ameaças militares e novas negociações económicas são claramente dois aspectos da nova «política de defesa» dos EUA.

Entretanto, Elbrige Colby, assistente do Secretário da Defesa, afirmou que apesar do discurso de Mattis colocar claramente a tónica na rivalidade com a China e a Rússia, a Administração Trump quer «continuar a procurar áreas de cooperação com essas nações». Assim, Colby afirmava :

«Não se trata de uma confrontação. É uma iniciativa estratégica reconhecer a realidade da competição e a importância do facto de que "as boas vedações fazem os bons vizinhos» [17].

Esta política defendendo o restabelecimento de fronteiras contraria frontalmente a visão imperial dos EUA. Bem resumida pelo Washington Post , esta última coloca um desafio : a persistência de um Império norte-americano «garante da paz mundial» ou então a guerra total. Esta visão opõe-se ao restabelecimento de hegemonias regionais, ou seja, de um mundo multipolar do qual, segundo este órgão de imprensa, «o resultado seria a futura guerra mundial» [18].

Tradução
Alva

[1« USA : Impérialisme contre ultra-impérialisme », par Jean-Claude Paye, Réseau Voltaire, 26 février 2018.

[2Carl Schmitt, Théologie politique I, trad J.-L. Schiegel, Paris, Gallimard, 1988, p. 16.

[3Marie de Vergès, « Les Etats-Unis de Donald Trump enregistrent leur plus gros déficit commercial depuis 2008 » («Os EUA de D. Trump registam o maior défice comercial desde 2008»- ndT), Le Monde économie, 7 février 2018.

[4Jean-Claude Paye, « USA : Impérialisme contre ultra-impérialisme », Op. Cit.

[5« Washington et Pékin écartent pour l’heure une guerre commerciale », La Libre et AFP, le 20 mai 2018.

[6Ver C. von Clausewitz, De la guerre, ouvr. cit., p. 66-67 et p. 671 et ss., et C. Schmitt, Totaler Feind, totaler Krieg, totaler Staat, ouvr. cit, p. 268 : «Sempre houve guerras totais ; no entanto não existe pensamento sobre a guerra total senão desde Clausewitz, que fala de "guerra abstrata" ou de "guerra absoluta"»..

[7Ler : Emmanuel Tuschscherer, « Le décisionisme de Carl Schmitt : théorie et rhétorique de la guerre », Mots. As linguagens do político, colocada em linha (online) a 9 de Outubro de 2008.

[8Alberto Toscano, « Le fantasme de l’abstraction réelle » («A fantasia da abstração real»- ndT), Revue période, février 2008.

[9Enzo Paci, Il filosofo e la citta, Platone, Whitebread, Marx, editions Veca, Milano, Il Saggitario, 1979, pp. 160-161.

[10C. Schmitt, « Totaler Feind, totaler Krieg, totaler Staat», in Positionen und Begriffe, Berlin, Duncker und Humblot, p. 268-273, voir note 1 in Emmanuel Tuschscherer, « Le décisionisme de Carl Schmitt : théorie et rhétorique de la guerre », op.cit., p. 15.

[11Bernard Pénisson, Clausewitz un stratège pour le XXIe siècle?, conferência no Instituto Jacques Cartier, 17 novembre 2008.

[12Remarks by James Mattis on the National Defense Strategy” («Observações por J. Mattis sobre Estratégia de Defesa Nacional»- ndT), by James Mattis, Voltaire Network, 19 January 2018.

[14National Defense Strategy of The United State of America, The President of The United State of America, December 18, 2017. A nossa análise : “A Estratégia de Segurança Nacional de Donald Trump”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 27 de Dezembro de 2017.

[15Mara Karlin, « How to read the 2018 National Defense Strategy («Como ler a Estratégia de Defesa Nacional de 2018»- ndT), Brookings Institution, le 21 janvier 2018.

[16Fyodor Lukyanov, « Trump’s defense strategy is perfect for Russia » (« A Estratégia de Defesa de Trump é perfeita para a Rússia»-ndT), The Washington Post, January 23, 2018.

[17Dan Lamothe, « Mattis unveils new strategy focused on Russia and China, takes Congress to task for budget impasse » («Mattis revela nova estratégia focada na Rússia e na China, chama Congresso a resolver impasse no orçamento»- ndT), The Washington Post, January 19, 2018.

[18« The next war. The growing danger of great-power conflict » («A próxima guerra. O perigo crescente de um conflito entre grandes potências»- ndT), The Economist, January 25, 2018.