A energia vem adquirindo um papel crescente como problema estratégico e político na América Latina. Detentora de 10,6% das reservas mundiais de petróleo, a região é exportadora de petróleo mas, com exceção da Venezuela (que detém 71% das reservas do continente), os outros países têm mais a perder do que a ganhar com a alta mundial dos preços do combustível. Neste contexto, a proposta do presidente Hugo Chávez de criação de uma empresa petrolífera estatal da América do Sul não entusiasma muito o Brasil, que parece ter outros projetos para a área, como a compra dos ativos da Shell, que já anunciou o fim de seus negócios na região. As conclusões são do Centro de Estudos Nova Maioria, da Argentina, em um documento que analisa o atual panorama político da região, do ponto de vista das estratégicas energéticas de seus principais países, com uma atenção especial para a relação entre Brasil e Venezuela.
O estudo faz uma rápida radiografia do petróleo e do gás na região para mostrar como o tema da energia está adquirindo um crescente papel estratégico. A América Latina tem hoje cerca de 10,6% das reservas mundiais de petróleo, 13% da produção e somente 8,4% do consumo. Do total das reservas, a Venezuela possui 71%, o que é equivalente a 7% das reservas mundiais. Em segundo lugar, vem o México, com 11%, seguido pelo Brasil, com 8%. Os demais países somados possuem outros 10%. Apesar de ser uma região exportadora, os efeitos da tendência mundial de alta no preço do petróleo não afetam do mesmo modo os países latino-americanos. A Venezuela é o único país que tem a ganhar com isso. O próprio México, que poderia ser beneficiado por se tratar de um importante exportador, tem muito a perder, pois a alta do petróleo afeta negativamente a economia norte-americana, à qual está ligado umbilicalmente. O relatório do centro de estudos argentino cita uma análise da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) dando conta de que se o preço do petróleo continuar subindo nos próximos meses, o crescimento da América Latina, que já é ligeiramente inferior à média mundial, será afetado negativamente.
O fator Chávez
Neste contexto, a recente vitória política do presidente Hugo Chávez, na Venezuela, adquire novos significados, aponta o estudo. Não é novidade que a política dos Estados Unidos para a Venezuela gira em torno da questão do petróleo. Entre 13% e 15% do petróleo importado pelos EUA sai da Venezuela, que é o principal exportador do mundo ocidental. Esse dado ajuda a entender o modo como Washington aceitou a vitória de Chávez no referendo, ou seja, com pragmatismo. E do lado de Chávez, aponta o documento do Centro Nova Maioria, apesar de sua pesada retórica anti-Bush, os negócios com os EUA seguem em ritmo forte. Após o referendo, a empresa petrolífera norte-americana Chevron Texaco anunciou investimentos da ordem de US$ 6 bilhões, para refinar petróleo na região de Orinoco. Já a Exxon Mobile participará de um projeto petroquímico de US$3 bilhões, juntamente com a Petróleos da Venezuela.
Chávez tem planos ambiciosos para a América Latina, e já propôs a criação de uma grande empresa petrolífera estatal na região, idéia que não é vista com muito entusiasmo pelo Brasil. O estudo do centro argentino resume o que está em disputa nessa proposta. Uma informação preliminar é importante. A Shell anunciou que está se retirando da América do Sul, notícia que deflagrou uma corrida atrás dos ativos dessa empresa. A empresa Nacional de Petróleo do Chile já comprou a rede de postos da Shell no Peru e pensa repetir a operação na Argentina, já enfrentando a competição da Venezuela, que tem o mesmo interesse. A Petrobrás adquiriu, em 2002, a empresa petrolífera Argentina Pérez Companc, e tem planos de expansão para toda a América Latina. Daí o pouco entusiasmo com a proposta de Chávez. A Argentina criou sua própria empresa petrolífera estatal, a Enarsa, que, conforme assinala o referido estudo, por enquanto é mais um projeto do que qualquer outra coisa. Ou seja, não está preparada para disputar o espólio da Shell no país.
As recentes viagens do presidente Lula ao Chile e ao Equador são vistas pelos analistas argentinos como um movimento para gerar uma alternativa diferente daquela proposta por Chávez. O presidente brasileiro firmou acordos de cooperação com as empresas estatais petrolíferas dos dois países. Já em relação à proposta do presidente venezuelano (de criar uma grande estatal do petróleo latino-americana), até agora o governo brasileiro não se pronunciou oficialmente sobre o tema.
O papel da Bolívia
Neste cenário, a Bolívia desempenha um papel estratégico fundamental. Detentora da segunda maior reserva de gás da América do Sul, o país virou um parceiro cobiçado por todos. A instabilidade da sua situação política interna é, em boa parte, reflexo dessa disputa em curso. A proposta de exportar esse gás para México e EUA via Chile acabou provocando a queda do presidente Sánchez de Lozada, no ano passado. O novo presidente, Carlos Mesa, obteve recentemente uma vitória no referendo sobre a exploração dos recursos energéticos do país, mas enfrenta forte resistência no Congresso e junto aos movimentos sociais que defendem que o gás boliviano seja utilizado para fortalecer a economia do país.
Nas últimas semanas, organizações campesinas, indígenas e sindicais vêm ocupando unidades petrolíferas em protesto contra a política de Mesa. Esses protestos já afetam a distribuição de combustíveis em nível interno, podendo afetar também as exportações de gás para a Argentina e o Brasil. Um dos grandes desafios da Bolívia é conseguir uma saída para exportar pelo Pacífico, tema de um recente acordo firmado com o Peru. Mas o clima de instabilidade política interna, conclui o estudo do Centro Nova Maioria, faz com que o futuro dessas negociações permaneça coberto por um grande ponto de interrogação.
O mesmo pode se dizer acerca do futuro dos projetos de integração regional, sugere o mesmo documento. Por trás dos discursos em defesa do Mercosul e do resgates dos ideais bolivarianos está em curso um velho e conhecido processo da história do capitalismo: uma acirrada disputa por mercados, pelo controle de fontes energéticas e, conseqüentemente, pela hegemonia política da região. O desenrolar da pesada competição em torno dos ativos da Shell na região pode ser uma boa pista para acompanhar a evolução dessa história. Guardadas as devidas proporções em escala mundial, é briga de cachorro grande.
Agência Carta Maior
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