Na madrugada de sexta feira, dia 20 de maio, aos 92 anos de idade, após um longo tempo de doença, morreu pacificamente, durante o sono, em sua residência de Chatenay Malabry, na região de Paris, o filósofo cristão francês Paul Ricoeur.
Além de ser um dos mais importantes pensadores franceses do pós-guerra, Ricoeur deixa com sua morte ao mesmo tempo um grande vazio no pensamento filosófico francês, e um imenso e respeitável legado no mundo intelectual do Ocidente.
Nascido em 1913, em Valence, ficou órfão cedo e foi educado pelos avós protestantes. A formação calvinista configurou sua personalidade e seu pensamento de tal maneira que além de celebrado e renomado filósofo, Ricoeur tornou-se uma referência não só na França como no mundo inteiro no que tange ao conhecimento da Bíblia e da teologia cristã. Seus escritos sobre o mal são obrigatórios no estudo de tratados teológicos tão importantes quanto os da Antropologia e da Graça. Assim também sua célebre obra sobre hermenêutica “O conflito das interpretações: ensaio de hermenêutica (1969)” é referência maior para o estudo da exegese bíblica e seu método.
Catedrático em Filosofia e doutor em Letras, Ricoeur
tornou-se professor em 1933. Logo marcou presença nos meios intelectuais franceses como herdeiro espiritual da
fenomenologia de Husserl e do existencialismo cristão. Prisioneiro durante a Segunda Guerra Mundial, sua reflexão
sobre a questão da violência e das guerras continuou a chamar atenção sobre o tema no pós-guerra. Destacou-se pela oposição que fez às Guerras da Argélia, nos anos 50, e da Bósnia, nos anos 90.
Membro fundador do comitê da revista "Esprit", Ricoeur começou a publicar mais intensamente a partir dos anos 50. Foi também diretor da "Revista de Metafísica e Moral” a partir de 1974. Sendo decano da Faculdade de Letras da Universidade de Nanterre (1969-1970), tocou-lhe
enfrentar as difíceis e conflitivas questões decorrentes dos acontecimentos de maio 1968 do movimento estudantil francês. Decepcionado com o resultado de seus esforços de diálogo com os estudantes, “exilou-se” voluntariamente fora da França, na Universidade de Chicago.
Entre suas principais obras, que marcaram toda uma geração de filósofos franceses, estão: A filosofia da vontade: I. O Voluntário e o Involuntário (1950); História e Verdade (1955); Filosofia da Vontade.II.Finitude e Culpabilidade: 1. O homem falível. 2. A simbólica do Mal (1969); Da Interpretação. Ensaio sobre Freud (1965); Ensaios Políticos e Sociais (1974); Ensaios de Hermenêutica I (O conflito das Interpretações (1969) e II (Do texto à ação (1986); Metáfora Viva (1975); Teoria da Interpretação: O Discurso e o Excesso de Sentido (1976); Leituras.1.À volta da Política. (1991); Si mesmo como um outro (1991) e A memória, a história e o esquecimento (2000).
Pensador comprometido, militante e profundamente cristão, Paul Ricoeur, Grande Prêmio de Filosofia da Academia Francesa, estabeleceu uma ligação entre a fenomenologia e a análise contemporânea da linguagem através da teoria da metáfora, do mito e do modelo científico. Estudou e escreveu muito sobre a maneira como a realidade de uma pessoa é configurada por sua percepção de eventos no mundo.
Seu conceito da ação que segue e permanece como legado humano é uma de suas grandes contribuições à filosofia. Após 1989 e os acontecimentos da queda do socialismo real que mudaram a face da terra, Paul Ricoeur voltou ao proscênio do debate filosófico francês com sua reflexão centrada sobre a pessoa, a alteridade, a solicitude e as instituições justas. Mas sobretudo sua filosofia moral encontrou poderoso eco no pensamento atual ao abrir a possibilidade de refletir e agir por si mesmo, ou mais exatamente, como diz o belo título de uma de suas grandes
obras, “Si mesmo como um outro”.
Fiel a sua fé, esse filósofo protestante que participou da fundação do mosteiro ecumênico de Taizé, na França, e jamais deixou de freqüentá-lo por ver ali um lugar onde era possível aproximar-se da bondade, soube fundar sua filosofia sobre o respeito do outro e a reciprocidade das relações humanas.
Em meio às verdadeiras guerras intelectuais que assolam violenta e soberbamente os meios acadêmicos, Ricoeur, em atitude sempre discreta e humilde,
privilegiou a escuta, a atenção profunda à assimetria possível no diálogo e ao argumento sempre respeitável do adversário. Para nós, intelectuais de hoje, seu legado é o de um caminho generoso e certamente apto a conduzir as criaturas falíveis que somos, através dos desconfortos destes tempos modernos e pós-modernos.
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