Carlos Mesa

A partir de El Alto, a terceira cidade da Bolívia, a mais de quatro mil metros de altitude, mineros e camponeses, descendentes de índios aymaras, liderados por suas mulheres, iniciaram um amplo movimento contra a privatização da água potável por uma multinacional. Enquanto isso, partidos, sindicatos e o movimento social exigem mudanças drásticas no uso do petróleo e do gás natural, últimas riquezas do país. A recusa do Congresso Nacional em atender tais demandas desencadeou, desde 6 de fevereiro, uma crise de graves consequências no país.

A posse na semana passada de Tabaré Vasquez na presidência do Uruguai - o primeiro presidente de esquerda na história do país - confirma a nova maré dos partidos e movimentos de esquerda na América do Sul. Venezuela, Chile, Brasil, Argentina e agora o Uruguai marcam o rompimento com o chamado Consenso de Washington, a dominância do pensamento e das políticas neoliberais no continente. Além disso, três países andinos - a Bolívia, o Peru e o Equador - apresentam uma forte ascensão dos movimentos sociais, com o rompimento de séculos de dominação branca, de elites voltadas para o exterior e nutridas por um consolidado desprezo pelo bem-estar da maioria do povo.

Estes três países andinos - o chamado Arco Indígena - apresentam, para além de uma história comum, um conjunto de forte componente étnico indígena, cujos representantes, após décadas de dominação e de desesperança, passaram a liderar amplos movimentos de rebeldia, exigindo transformações de caráter social e político. No Peru (28 milhões de habitantes, dos quais 45% são índios e outros 37% são mestiços) a fuga do ex-presidente Alberto Fujimori e a queda da máfia de Montesinos, em 2000, no poder desde 1990, permitiu a eleição do primeiro presidente não criollo do país, Alejandro Toledo. Entretanto, a opção neoliberal de Toledo acabou por surgiu aos olhos de seus conterrâneos como uma verdadeira traição, levando a uma perda vertiginosa de autoridade e de prestígio do governo, expressas em amplas manifestações populares de protesto contra o neoliberalismo (2002).

No Equador (13 milhões de habitantes, dos quais 25% são índios e outros 55% são mestiços), após uma longa crise institucional, entre 2000 e 2003 o movimento indígena - denomidado Pachakutik - expressão da Confederação das Nacionalidades Indígenas - passa a exercer uma oposição direta ao governo, formulando um projeto autônomo para o país. As últimas ações do governo em Quito fizeram soar alarmes em Washington, que começou a denunciar a “chavenização”do país. Contudo, é na Bolívia (9 milhões de habitantes, dos quais 55% são índios e outros 15% são mestiços) que os movimentos sociais autônomos ganharam mais força e apresentam-se em condições reais de assumir o poder.

Bolívia: o centro do Arco Indígena

Após uma confusa e disputadíssima eleição - na qual os EUA, através de uma série de declarações despropositadas contra o candidato Evo Morales, do Movimiento al Socialismo, desempenhou um papel central -, Sanchez de Lozada, um político tradicional, amigo dos EUA e de forte ideologia neoliberal, é eleito indiretamente pelo Congresso, derrotando Evo Morales, acusado pelos EUA de envolvimento com o narcotráfico. Na verdade, Morales é um importante líder camponês e dos cocaleros, exigindo condições mais justas para a substituição do cultivo da coca, atividade milenar do campesinato indígena boliviano.

Lozada, por sua vez, inicia uma série de reformas privatizantes, desde a distribuição da água potável até a exploração e exportação do gás e do petróleo. A situação política torna-se insuportável quando o governo concede autorização para que empresas americanas e espanholas exportem petróleo através de território chileno disputado com a Bolívia (perda o litoral na Guerra do Pacífico, de.1879-1884). Após maciças manifestações populares - entre fevereiro e outubro de 2003 -, o governo ordena uma brutal repressão em outubro, deixando 78 pessoas mortas, além de violentas razzias em bairros populares, como El Alto.

Com a mediação argentina e brasileira, Lozada abandona o país e refugia-se nos EUA. O Congresso confirma o vice-presidente Carlos Mesa, um empresário sem partido, presidente do país. Duas tarefas imediatas se apresentam: de um lado, a elaboração de uma nova constituição para o país, de outro a votação da Ley de los Hidrocarburos, visando regular democraticamente o uso dos recursos naturais bolivianos, além da punição dos responsáveis pelos massacres de outubro.

Contudo, desde cedo, a população e o movimento social se sentem burlados: o Congresso Nacional, que deveria guiar tais ações, é o mesmo que elegeu Sanchez de Lozada com a hegemonia das forças conservadoras, contrárias a mudança social exigida pelo movimento popular de outubro de 2003.

O movimento social boliviano exige que o uso dos recursos oriundos do hidrocarbonetos - gás e petróleo - sejam revertidos para o bem-estar da população - ao contrário da prata e do estanho, que foram exauridos sem qualquer benefício para o país -, além da exigência de uma saída própria para o mar. Se a primeira questão avançou a passos largos em direção a um consenso popular pela cobrança de direitos de exportação da ordem de 50% - apesar da desconfiança das empresas estabelecidas no país, entre as quais a Repsol, da Espanha, e da Petrobrás - a questão da saída marítima é taxativamente recusada pelo Chile, enquanto La Paz é apoiada pelo Peru e pela Venezuela de Chávez.

A paralisia das reformas

A crise boliviana, contudo, continuou a crescer e inflamar as diversas partes envolvidas. O trauma político e institucional de 2003, com a deposição de Sanchez de Lozada, não tocou a maior parte das instituições bolivianas. Assim, o tradicional poder judiciário, em especial o Supremo Tribunal, manteve-se em mãos da oligarquia tradicional, recusando agilizar os processos contra o ex-presidente e seus ministros da defeso e do interior acusados de crimes contra o povo. O pedido de extradição aos EUA para julgá-lo por genocídio na própria Bolívia também foi paralisado.

Um ano e seis meses depois da deposição de Lozada, a “Fiscalia” apresentou um processo contra o ex-presidente repleto de erros, facilitando a impugnação dos advogados.
O Movimento Nacionalista Revolucionário/MRN, partido do ex-presidente e com forte presença no Congresso Nacional, festejou o procedimento penal capenga. Com os erros do Judiciário, os responsáveis pela mortas de outubro de 2003 poderiam ver-se livres de condenações.

Ao mesmo tempo, o MRN exige que a “Fiscalia” pronuncie os incitadores da crise, ou seja, o próprio movimento social e nacional, invertando as responsabilidades sobre o massacre. Por sua vez, uma forte reação popular, encabeçada pelo “Movimiento Boliviano contra La Impunidad”, exige uma ação rápida e eficaz para punir os responsáveis pelas mortes de outubro... até agora sem sucesso! Nestor Salinas, um dos líderes da oposição, em entrevista à TV Carta Maior, denunciou há um mês as diversas manipulações para impedir o julgamento dos responsáveis.

Da mesma forma, a composição do Congresso Nacional, onde o presidente Mesa dispõe do apoio de cerca de 50 congressistas oriundos de partidos tradicionais e voto favorável irregular dos partidos de direita, representa uma realidade política já superada com a deposição de Lozada. Assim, a exigência de Evo Morales, do MAS, para eleições imediatas e para uma Assembléia Constituinte traduz, em verdade, a evolução política do país. Para as forças conservadoras, as eleições gerais seriam um golpe fatal, já que perderiam a Presidência exercida por Mesa - o mandato do deposto Lozada vai até 2007 - e o próprio Congresso, de onde podem controlar o avanço do movimento social.
Entretanto, o elemento chave na crise boliviana é a Ley de Hidrocarburos.

Para o conjunto do movimento social boliviano, o país já foi por demais explorado por forças estrangeiras. Primeiro foi a prata, explorada até a exaustão. Depois o estanho, que só deixou montanhas vazias... Agora, o gás e o petróleo são os últimos recursos disponíveis ao país. Consideram por isso que sua exploração deve ser revertida inteiramente para o bem-estar nacional, ensejando recursos para a industrialização, a criação de empregos e melhoria das condições sociais.

Para isso exigem a taxação de 50% das exportações, em vez dos atuais 18% (legislação de Lozada ainda em vigor). Mesa não concorda, e em acordo com o Congresso Nacional, aprovou a manutenção dos 18% - pela diferença de 1 voto e com a participação irregular de deputados afastados! - e a não convocação das eleições para a constituinte. Para Evo Morales e o MAS, além dos movimentos sociais autônomos, trata-se de manter o poder de um “Congresso morto”, herdado de Lozada, e que não mais espelha as forças políticas atuais da Bolívia.

Um golpe mediático

O argumento de Meza para recusar o projeto nacionalista da oposição foi o pior possível e só fará agudizar a crise, explicitando um presidente colocado contra a parede. Ao admitir que potências estrangeiras estariam pressionando o governo e poderiam boicotar o país, acirrou os ânimos e desencadeou uma forte corrente de indignação patriótica: "Es una ley que la comunidad internacional no acepta, nos lo ha dicho Brasil, España, Estados Unidos, Francia, Gran Bretaña, el Fondo Monetario, la Corporación Andina de Fomento, el conjunto de la Unión Europea. En el momento en que una sola empresa petrolera coloque en entredicho la ley del Congreso Estados Unidos puede dejar de ayudarnos, y la Unión Europea puede poner en una suerte de congeladora al apoyo a nuestro país", declarou o presidente na televisão nacional.

Ao mesmo tempo que anunciava a sua renúncia, não consumada, fazia um apelo a Congresso Nacional, em busca de apoio, assemelhando-se incrivelmente às manobras de Jânio Quadros ou, no seu limite, à velha prática latino-americana de “auto-golpe”. Desde 6 de fevereiro, um domingo, com o povo em casa vendo TV, o presidente, sem aviso prévio, anuncia sua renúncia: a ser discutida pelo Congresso Nacional. Inúmeros analistas e políticos reconheceram, de imediato, o “acto demagógico brillante” de Mesa, enquanto outros consideraram uma “chantagem” política, visando obrigar o Congresso a apoiá-lo, ou ver-se nas mãos do movimento social.

Mesa fez um uso claro da TV, procurando mostrar a oposição como golpista e violenta, quando a TV ATB, comprada pela empresa espanhola Prisa, uma subsidiária dominada pela petrolera espanhola Repsol, mostrava “massas” populares nas ruas de La Paz apoiando o governo. Tais imagens eram retransmitidas pela CNN, promovendo no conjunto do país e no exterior a idéia de vitimização do presidente. Repetia-se em La Paz os mesmos procedimentos que levaram ao golpe de abril de 2002 em Caracas contra Hugo Chávez.

Imagens independentes de praças vazias, cartazes e faixas já elaborados e em pacotes sendo despachados por carros sem placa desmentiam o caráter “espontâneo” do apoio “popular” ao presidente. Não mais de duas mil pessoas, aos gritos de “Nó, cocaleros; Nó comunistas” vinham dos bairros ricos de La Paz. Enquanto isso, os habitantes de AL Alto, de Sucre, Potosi se mobilizavam, bloqueando estradas, paralisando o comércio e convocando uma greve geral.

Pagando pela água

Particularmente irritante para o movimento social foi a negativa do presidente em romper os contratos leoninos assinados por Sanchez de Lozada com a empresa francesa “Cie. Suez/Lyonnaise des Eaux”, monopolizadora da água potável de La Paz e de todo o fornecimento de El Alto, através da empresa Águas de Illimani. Esta privatização da água potável, um dos crimes denunciados no Fórum Social Mundial em Porto Alegre, foi uma tendência dos governos liberais na América Latina, tendo acontecido o mesmo no Uruguai, onde o contrato, com uma empresa espanhola, foi rompido em função de um referendo popular.

Para os habitantes de El Alto, 800 mil pessoas, batidos pelo desemprego oriundo das duras medidas neoliberais, com afluxo constante de índios camponeses levados à miséria pelo programa de erradicação da coca, patrocinado pelos EUA, a privatização da água potável é um acinte insuportável. No seu discurso de renúncia condicional, Mesa acusou o dirigente da Federación de Juntas Vecinales de El Alto (Fejuve), Abel Mamani, “de tratar de obligar al gobierno a romper de inmediato contrato con la proveedora de agua potable de esa ciudad y de La Paz, la empresa Aguas del Illimani, controlada por la francesa Lyonnaise des Eaux, lo que acarrearía serios problemas para el país”.
Mais uma vez Mesa utilizou o argumento da força das potências estrangeiras, humilhando e irritando o movimento social. Devemos ter em mente que o estopim do levante popular contra Lozada foi a venda de petróleo a baixo preço para os EUA através do Chile, com pagamento de royalties para este país. .

Santa Cruz de la Sierra: ameaça à unidade nacional!

Ao mesmo tempo, as provinciais de Santa Cruz e Tajira, onde o desenvolvimento industrial foi intenso nos últimos anos, e bastante voltadas para o Brasil, ameaçaram a secessão. Nas últimas manifestações cruzenhas, transmitidas pela CNN, em favor da autonomia de Santa Cruz, Mesa surgiu nas telas de TV caracterizando o movimento como uma “festa democrática”, para profundo amargor dos defensores da unidade nacional. Assim, o próprio destino da Bolívia encontra-se hoje em risco.

No final de janeiro último, o Comitê Cívico de Santa Cruz - 830 km de La Paz - resolveu convocar uma assembléia popular com a finalidade de declarar a existência de “un Gobierno autónomo provisional”, provocando a denúncia, por parte de 10 prefeitos da região, da existência de uma conspiração oligárquica dos empresários de Santa Cruz contra a unidade nacional. Prédios públicos, inclusive a prefeitura de Santa Cruz, foram ocupados, sem qualquer manifestação de La Paz. Os empresários cruzenhos denunciam o abandono da região, a alta dos impostos e, principalmente, do preço da gasolina.

Seus críticos, no entanto, sublinham que os investimentos estatais na região foram constantes desde 1946, resultando na prosperidade local. Ana Maria de Campero, Defensor Del Pueblo ( 1998-2003 ), nega, contudo, as afirmações dos empresários da região: “(...) tienen miedo, sobre todo los que han recebido tierras del Estado a ningún custo. Hay proprietários que ni siquiera se han molestado en registrarlas. Por que non dicen que Santa Cruz es el departamiento donde más impuestos se evaden?”

Assim, todos estes interesses poderiam ser fortemente contrariados caso fosse convocada uma Assembléia Nacional Constituinte, capaz de impor uma ampla reforma democratizante no país. Para os setores tradicionais, seria então estratégico substituir o atual congresso, herdado de outra situação política, por uma assembléia que espelhe de fato a atual situação política do país. Contra isso, Mesa e a tradição política local exigem a eleição de um presidente para substituí-lo só em 2007, congelando a situação política do país.

A crise boliviana traduz, em verdade, a negativa das elites tradicionais, brancas, elitistas e oligárquicas em reconhecer o avanço de movimentos sociais autônomos, à margem dos partidos tradicionais.