A França havia sido chamada, por Engels, de “laboratório de experiências políticas”. A revolução de 1789, seguida pelas de 1848 e da Comuna de Paris, em 1871, mostravam como o país sempre apresentava os fenômenos da forma mais radical e aguda. O governo de Frente Popular, nos anos 30, e as barricadas de 1968, pareciam reiterar esse papel da França.

No entanto, dali para frente, a França aparentemente tomava outro rumo. Se a eleição de François Mitterrand em 1982 parecia realizar o sonho da esquerda francesa, com seu programa republicano, a virada desse governo, logo na primeira crise, um ano depois de eleito, para abandonar esse programa e aderir às políticas neoliberais, apontava em outra direção.

A esquerda francesa ficou descaracterizada, a ponto de que a alternância se deu com a direita. A greve de 1997 ameaçou retomar a tradição republicana da esquerda francesa, com a substituição do governo de direita pelo do socialista Leonel Jospin, que recolheu alguns aspectos da movimento altermundialista, que começava a surgir.

Porém, aos poucos seu governo foi retomando o projeto de privatizações e terminou, melancolicamente, sendo excluído até mesmo do segundo turno das eleições presidenciais pelo candidato da extrema-direita.

Porém, outra França se manifestava. É a França de Attac, do Le Monde Diplomatique, de José Bové, dos grupos radicais da esquerda, do Fórum Social Europeu. A mesma França que já havia quase derrotado o projeto de unificação européia no referendo que consultava sobre a adoção da moeda única.

A França que disse não ao projeto de Constituição Européia é a França antineoliberal, que defende os direitos republicanos, contra seu abandono por parte dos que levam a cabo a proposta de unificação da Europa. Decisiva para o resultado foi a crise interna dos socialistas, na qual um setor significativo, embora perdendo a consulta interna, manteve capacidade de mobilização das bases socialistas. Estas votaram majoritariamente - 55% a 45%, a mesma proporção do resultado geral - pelo “não”, contrariando a orientação da direção do partido.

Como um dos países pilares da unificação européia, junto com a Alemanha, o “não” francês não é um não qualquer - como os da Dinamarca e da Suécia, em consultas anteriores. Por isso instala uma crise no centro político do projeto de unidade européia. Esta, nascida ainda em tempos do Estado de bem-estar social, foi mudando seu caráter, até induzir o modelo anglo-saxão no coração da unidade européia. Por isso foi derrotada.

Como conseqüência, a crise não se instala apenas no governo francês - que com razão considera que os franceses votaram contra ele -, mas também no processo europeu, que deve ser confirmada pelo previsível “não” holandês ainda nesta semana. O “não” francês é o “sim” a uma outra França, sintonizada com o movimento altermundialista.

Agência Carta Maior