Congresso da Bolívia aceitou, quinta-feira (9) à noite, a renúncia do presidente Carlos Mesa e indicou o presidente da Suprema Corte de Justiça, Eduardo Rodríguez, como o novo presidente do país. Em seu primeiro pronunciamento, Rodríguez anunciou que pretende antecipar a eleição presidencial. A decisão foi tomada por unanimidade pelos parlamentares em uma sessão emergencial.

Os dois primeiros nomes na linha sucessória, o presidente do Congresso, Hormando Vaca Díez, e o presidente da Câmara dos Deputados, Mario Cossío, renunciaram à postulação de ocupar a cadeira presidencial. A sessão emergencial do Congresso chegou a ser suspensa em razão dos protestos populares na cidade de Sucre, capital constitucional do país, após a morte de um manifestante em confronto com a polícia. A capital La Paz segue cercada há mais de três semanas por manifestantes que exigem a nacionalização do petróleo e do gás, principais riquezas do país.

Eduardo Rodríguez não fixou data para a nova eleição, mas a Constituição boliviana prevê que, nestas circunstâncias, ela deve ser realizada em um prazo de seis meses. O novo presidente também prometeu discutir com os movimentos que lideram os protestos suas reivindicações de nacionalização da produção e exploração de petróleo e gás e convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.

Quinto presidente a assumir o governo da Bolívia nos últimos quatros anos, Rodríguez pediu uma trégua aos manifestantes para encaminhar o processo eleitoral. Ele também manifestou apoio à reivindicação de recuperar a propriedade nacional dos combustíveis, conforme prevê a Constituição do país, prometendo executar a norma complementar à Lei de Hidrocarbonetos que deve ser sancionada pelo Parlamento. Ressaltou, porém, que o tema da nacionalização dos campos de gás e de petróleo depende de uma resolução do Congresso.

Movimentos sociais analisam nova conjuntura

O líder oposicionista, Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), manifestou-se nesta sexta favorável a uma trégua nos protestos para que se possa discutir com Rodríguez a implementação do processo eleitoral e da convocação da Assembléia Nacional Constituinte.

Nesta sexta-feira, as organizações sociais que lideram os protestos iniciaram uma série de reuniões para definir como se dará o prosseguimento das mobilizações que paralisaram o país em defesa da nacionalização dos hidrocarbonetos e da convocação de uma Constituinte. O dirigente camponês Moisés Torres resumiu: “Não conseguimos nossa demanda principal que é a Lei de Convocação da Assembléia Constituinte, mas obtivemos uma vitória política ao impedir que Hormando Vaca Diez ou Mario Cosío assumissem a presidência da Bolívia”.

Os camponeses que tomaram os poços petroleiros em Santa Cruz de la Sierra estão avaliando a nova situação, o mesmo ocorrendo com os dirigentes de El Alto, a cidade ao lado de La Paz que é um dos principais focos da rebelião.

Segundo o jornalista e analista político boliviano, Hugo Moldiz Mercado, a embaixada dos Estados Unidos e os partidos conservadores que sustentaram o governo do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, deposto em outubro de 2003, foram os grandes derrotados com a indicação de Rodríguez. Eles apostavam todas suas fichas na alternativa Vaca Diez.

A desistência do presidente do Senado e do presidente da Câmara, Mario Cossio, assinalou Mercado, foi resultado direto das intensas mobilizações de rua dos últimos dias. Dirigentes dos partidos conservadores e representantes da embaixada dos EUA interpretaram o resultado como um complô patrocinado pelo presidente Carlos Mesa e por Evo Morales. A interferência da embaixada dos EUA na crise foi denunciada na tarde de quinta-feira, quando um de seus assessores, Eduardo Sffeir, foi visto em Sucre junto com Mauricio Balcazar, homem próximo a Sanchez de Lozada, que atualmente vive refugiado nos EUA.

Um cenário complexo

A massiva oposição popular a Vaca Diez e Mario Cossio, assinalou ainda Hugo Mercado, teve grande impulso na quinta-feira, às vésperas do encontro do Congresso, inclusive nas áreas rurais do departamento de Santa Cruz, onde residem os setores oligárquicos mais importantes do país.

A expectativa, registrou o analista, é que a indicação de Rodríguez como presidente da República baixe os níveis de tensão no país, mas isso ainda depende da decisão dos setores mais radicalizados que defendem a nacionalização do petróleo e a convocação da Constituinte.
Nesta sexta, Rodríguez chegou a La Paz onde foi recebido por Carlos Mesa.

A transição de governo ocorre no momento em que a capital boliviana está paralisada pela escassez de combustíveis e de alimentos. Em El Alto, a Federação de Juntas Vicinais chamou uma reunião ampliada para analisar a nova situação e decidir os próximos passos do movimento. O fim de semana deve ser marcado por muitas reuniões e articulações.

Rodríguez terá agora a difícil tarefa de organizar um gabinete de ministros para um governo que deve ser curto, de alguns meses apenas. As eleições presidenciais devem ser convocadas ainda para este ano. Ainda não está definido se elas serão acompanhadas por uma eleição para uma Assembléia Constituinte, como defendem os partidos de oposição e os movimentos sociais. Evo Morales é um dos principais interessados nesta decisão.

O jornalista alemão Gerhard Dilger, radicado em Porto Alegre e que acaba de voltar da Bolívia, disse à Carta Maior que as chances de Morales ser eleito presidente são pequenas nas atuais regras do sistema eleitoral boliviano, onde a decisão final depende do Congresso. Seria preciso que o atual Congresso dissolvesse a si mesmo e aceitasse a abertura de um processo constituinte para mudar as atuais regras do jogo. Por outro lado, assinalou Dilger, nos dias que correm tudo pode acontecer na Bolívia.

Oligarquias contra o muro

Entre os cenários possíveis, uma tentativa de golpe de Estado patrocinada pelos setores oligárquicos conservadores não está descartada, o que poderia levar o país para uma guerra civil. Na quinta-feira, Evo Morales denunciou que o governo dos EUA, empresas transnacionais do setor petrolífero e partidos políticos conservadores pretendem consumar um golpe de Estado com características fascistas e empossar Vaca Diez na presidência da República.

A denúncia foi feita depois de uma inusitada coletiva de imprensa do Alto Comando Militar boliviano, onde oficiais afirmaram que apoiariam as decisões do Congresso. Segundo Morales, o governo dos EUA trabalhava para garantir a indicação do senador Vaca Diez na reunião do Congresso em Sucre, o que acabou não acontecendo.

O dirigente do MAS também lembrou que, em março de 2005, após o primeiro pedido de renúncia de Mesa, começou no país uma campanha através dos meios de comunicação para criminalizar os movimentos sociais bolivianos.

Neste mesmo período, relatou ainda Morales, três membros da Câmara de Indústria e Comércio de Santa Cruz de la Sierra viajaram aos Estados Unidos para uma reunião no Escritório de Segurança Hemisférica do governo norte-americano. O ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada teria participado deste encontro. Nesta reunião, teria sido traçada uma estratégia de ofensiva contra o governo de Carlos Mesa e contra o MAS, relacionando o partido a uma suposta intervenção do governo de Hugo Chávez nos assuntos internos da Bolívia.

O objetivo maior seria mesmo garantir com que Vaca Diez assumisse a presidência. Morales disse que os compromissos de Vaca Diez para ser presidente seriam a garantia de imunidade para soldados norte-americanos, evitar a abertura de um processo de responsabilidade contra Sánchez de Lozada e seus ministros, apoiar o referendo de autonomia defendido pelas oligarquias (especialmente em Santa Cruz de la Sierra), impedir a convocação de uma Assembléia Constituinte e aprovar uma Lei de Hidrocarbonetos que não seja prejudicial aos interesses das transnacionais do setor petrolífero.

Ainda segundo a denúncia de Evo Morales, a planificação do golpe de Estado teria também como objetivos debilitar e acabar com o governo de Mesa, destruir as principais organizações sociais indígenas e campesinas e o MAS, e ainda demonstrar que, apesar de todos os erros dos últimos anos, o sistema democrático tradicional é o melhor caminho para o país. Essa estratégia teria sido bloqueada com a indicação de Rodríguez para a presidência, o que não significa que este totalmente derrotada.

Na avaliação do MAS, a principal luta que ocorre agora na Bolívia é entre o povo e o império, entre os setores oligárquicos bolivianos e os povos indígenas e campesinos. E essa luta parece longe de acabar. O curto governo de Rodríguez servirá de palco nas próximas semanas para novos capítulos desse confronto.