Os venezuelanos foram chamados a votar pela terceira vez em pouco mais de um ano: primeiro, no referendo constitucional sobre a continuidade ou não do mandato do presidente da República –procedimento democrático unicamente presente na Constituição desse país. Em seguida, votaram para a renovação das autoridades municipais em todo o país.

Agora, neste domingo, os venezuelanos votaram para a renovação do Parlamento.

Essas votações se dão no marco de um extraordinário e profundo processo de transformações no país, do qual não podem ser desvinculadas. Diante do esgotamento definitivo da capacidade de governo dos partidos tradicionais – Ação Democrática, social democrata, e Copei, democrata cristão -, abriu-se ao longo da década de 90 uma profunda crise hegemônica na Venezuela. No seu sentido gramsciano, é uma situação em que se dá um desencontro radical entre as forças sociais e suas formas de representação política.
Nesse vazio se projetavam duas soluções por fora das alternativas tradicionais.

A candidatura favorita, no início da campanha presidencial de 1998 era uma ex-miss universo, Irene Saez, candidata dos banqueiros venezuelanos, refugiados em Miami, diante do escândalo da quebra do sistema bancário privado. Hugo Chavez havia aparecido à vida política do país por um movimento de oficiais das FFAA em protesto pelo pacote neoliberal que Carlos Andrés Perez havia baixado, nem bem havia sido eleito de novo à presidência, abandonando o programa social-democrata do seu partido – de maneira similar a FHC no Brasil. Este foi derrubado por denuncias de corrupção – como aconteceu com Collor no Brasil – e preso.

A candidatura de Hugo Chavez apareceu como alternativa de esquerda à crise de hegemonia, acabou triunfando há exatos 7 anos e desde então passou a colocar em prática um cada vez mais extenso e profundo processo de transformações sociais, econômicas e políticas. Este se chocou frontalmente com os interesses da oligarquia venezuelana, que havia protagonizado um dos casos mais impressionantes de corrupção no nosso continente, ao se valer dos ganhos do petróleo, não para desenvolver econômica e socialmente o país, mas para enriquecer-se pessoalmente.

Estes setores reagiram de forma violenta, como se sentissem que o que consideravam “seu país” lhes estava sendo tomado, por forças populares. Estas violentas reações, articuladas com o governo estadunidense, incluíram um golpe de Estado, em abril de 2002, conduzido pelo monopólio privado da mídia, as entidades empresariais e os partidos tradicionais. Este movimento foi derrotado por uma impressionante mobilização popular, quando o povo se deu conta do que estava acontecendo. Incluíram também um lock-out prolongado, através do qual tentavam gerar uma situação econômica insustentável para o governo. A reação deste incluiu, por sua vez, a retomada de controle por parte do governo da PDVSA, a empresa estatal do petróleo, até ali dominada por uma tecnocracia com mentalidade privada, junto a uma aristocracia sindical, ligada aos partidos tradicionais.

O governo sobretudo colocou em prática um programa de resgate social – em que Cuba tem um papel essencial de apoio -, que permite atualmente ao governo de Hugo Chavez dispor de um apoio de mais de 70%, conforme as pesquisas de empresas privadas. Por outro lado, derrotada nesses embates, a oposição jogou todas suas cartas no referendo constitucional de agosto deste ano, acreditando que poderia revogar o mandato do presidente. Sua derrota – com um resultado de 59 a 41% -, cuja legitimidade de procedimento foi atestada pela Fundação Carter e pela OEA.
A partir dali, a oposição ficou dividida entre voltar a tentativas golpistas, alentada pelo governo Bush, ou seguir tentando obter espaços no sistema institucional, que havia ampliado sua legitimidade. Diante das eleições parlamentares desta semana, voltou a se dividir entre esses dois pólos.

Uma parte dela participou, com pouca adesão popular, enquanto outra, se dando conta que teriam um resultado muito desfavorável, apelaram para a abstenção, chamando inclusive a que as pessoas fossem às igrejas rezar pelo futuro da Venezuelas (sic) – em um estilo bem parecido com as mobilizações prévias ao golpe de 64 no Brasil. Agindo dessa maneira, se subtraíam a um julgamento popular sumamente contrário a ela, ao mesmo tempo que se somavam à campanha do governo Bush contra a Venezuela e tratavam de se valer de um movimento ambíguo, de tentar fazer passar que a abstenção seria uma adesão às suas posições – desprestigiadas e isoladas da massa da população venezuelana.

Na Venezuela o voto não é obrigatório. Além disso, existe uma tradição de abstenção, salvo nas eleições em que as pessoas sentem que se decidem os destinos do país – como aconteceu no referendo de agosto passado. Logo em seguida se realizaram eleições municipais e abstenção foi muito alta, da mesma forma que aconteceu nas eleições para governadores e prefeitos, em outubro do ano passado.
A eleição deste ano se apresentava com um forte favoritismo das forças que apóiam o governo, mesmo se tivessem participado todos os partidos da oposição.

O abandono destes, consolidou ainda mais a idéia generalizada que o resultado seria fortemente favorável ao governo. O que é normal, dado que o país viu uma enorme transformação na consciência das pessoas, especialmente nos dois últimos anos, com o avanço da consciência e da organização social.

No entanto, esta ainda é nascente, porque a grande massa da população estava, até recentemente, totalmente marginalizada da vida política e cultural do país. Isto se dava até mesmo geograficamente, com as favelas distanciadas dos eixos urbanos fundamentais da vida do país, sem informação, nem direitos ou capacidade de fazer sentir sua voz. De tal forma, que mesmo no momento do golpe de abril de 2002, essa massa demorou um pouco para saber do que se passava e se dar conta que seu destino estava se decidindo naquele momento, o que fez com que descessem maciçamente na direção do palácio presidencial e repusessem a Hugo Chavez no governo do país.

São setores que estão forjando a nova força social no processo de transformações profundas da Venezuela, que ainda necessitam tempo e experiência para se constituir como sujeitos sociais reais desse processo político e ideológico. Vivem entre suas experiências passadas, de fragmentação e de exploração, e as novas condições que vão sendo gestadas, para sua emancipação.

O resultado das eleições desta semana faz refletir no sistema político a enorme transformação da relação de forças favoravelmente à esquerda, constituindo um Parlamento afinado com o processo revolucionário bolivariano. Foram eleitoros 114 parlamentares do Movimento Quinta República, que junto a outros partidos que participam do bloco governamental, dão um sólido apoio institucional ao governo e seu programa de transformações – que Hugo Chavez enuncia como de um “socialismo do século XXI”.

Compareceram cerca de 33% dos eleitores, em condições de que havia segurança de vitória do governo, além de que choveu durante todo o dia. Trata-se de um índice alto de abstenção, embora menor do que nas eleições municipais e de governadores e prefeitos, quando a oposição participou. Revela como a revolução bolivariana necessita avançar mais na construção de consenso ativo, transformando a simpatia ao processo revolucionário em adesão mais ativa, organizado, consciente. Porém, este é um problema da revolução bolivariana, não revela em nada adesão ‘as teses de uma oposição cada vez mais enfraquecida, isolada e desprestigiada.

A posição adotada pela oposição, articulada com o governo dos EUA, representa uma tentativa de acusar o regime político venezuelano de falta de legitimidade, para justificar ações golpistas, de novo, contra o governo de Hugo Chavez. Mas a bola continua no campo da revolução bolivariana, segue a seu alcance continuar avançando nas suas políticas de universalização dos direitos do povo, de afirmação da soberania venezuelana e de integração latino-americana. As eleições mudam a composição do Parlamento e geram condições mais favoráveis a esses avanços, porém a batalha decisiva, dentro e fora da Venezuela, segue sendo a batalha ideológica, pelo que é essencial a democratização da mídia – sem o qual nunca teremos democracias reais nos nossos países – e o avanço na formulação dos ideais do socialismo do século XXI.