O anúncio, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de uma taxa de crescimento de 2,7% para a economia brasileira no primeiro trimestre, em comparação ao mesmo período do ano passado, foi o sinal aguardado por ministros e porta-vozes do governo para passarem a bombardear a opinião pública com uma série de previsões otimistas para o restante de 2004, e também para 2005. Num rasgo de otimismo, o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, apressou-se a equiparar aquele número às taxas de crescimento experimentadas pelos países asiáticos, entre 6% a 9% ao ano - uma clara mistificação da realidade concreta.

Na visão de analistas independentes, os dados que explicam o fraco desempenho da economia doméstica nos últimos anos continuam presentes e não foram ainda eliminados pela incipiente reação indicada pelos números do IBGE e de outras instituições. O desemprego mantém-se elevado, batendo em 13,1% em abril, um novo recorde, e a renda voltou a cair 3,5% na comparação com igual período de 2003. Os juros continuam nas alturas, encarecendo o custo dos empréstimos para empresas e pessoas físicas, e manteve-se a política de arrocho aos gastos públicos, obrigando o governo a reduzir compras e investimentos, ajudando a esfriar ainda mais a economia.

Estabilidade em risco

“Os dados mostram que o elevador simplesmente parou de despencar, já que a comparação toma como base o primeiro trimestre do ano passado e nada foi pior do que aquele período”, comenta o economista Carlos Eduardo Frickmann Young, professor de contas nacionais e economia do meio ambiente do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ainda mais incisiva, a equipe de analistas da Global Invest, consultoria econômica com sede em Curitiba (PR), decreta a falência do modelo econômico, adotado no país, de resto, há mais de década. “A política econômica vem sendo conduzida de forma equivocada e corre sério risco de insucesso”, avalia a consultoria em recente relatório.

Young lembra que a economia se encontrava literalmente paralisada nos primeiros meses do ano passado, na seqüência de um período de disparada do dólar, seguido de elevação de preços e juros. A mistura, explosiva para as pretensões de crescimento de qualquer economia, era temperada por quase sete anos consecutivos de queda na renda do brasileiro - condições que persistem, hoje, em suas linhas gerais. O dólar recuou, desde então, e os juros baixaram, mas mantêmse entre os mais altos do mundo, aponta a Global Invest, enquanto o consumidor continua sem renda e sem emprego.

O modelo econômico, ou seja, o conjunto de políticas econômicas definidas pelo governo, prossegue a Global Invest, não só não consegue promover o crescimento, como cria novas distorções na economia, que ameaçam a própria estabilidade econômica e institucional.

Remédio é doença

A política de arrocho fiscal (baseada no aumento de impostos e em cortes de investimentos) e de juros altos, reforça Young, opera como um Robin Hood às avessas: tira recursos dos pobres (via cobrança de impostos e redução de gastos públicos, que afeta a qualidade dos serviços oferecidos às faixas de renda mais baixa) para transferi-los aos mais ricos, por meio do pagamento de juros eleva- dos aos donos do capital, participantes da ciranda financeira.

“A situação social já é crítica -com um grau de informalidade imensurável, pobreza e violência- e piora na medida em que o endividamento do Estado (agravado pela política de juros altos) o imobiliza e impossibilita a atuação do setor privado”, analisa a Global Invest, para concluir que, depois de dez anos de aplicação ininterrupta, “o remédio (juros altos) virou doença”.

Numa primeira etapa, entre 1994 e 1999, o governo adotou a política de juros altos para atrair recursos externos e compensar a torra de dólares promovida pela abertura da economia e pelo dólar barato, que inundaram o país de quinquilharias importadas, causando fechamento de empresas e desemprego, desestruturando setores inteiros na economia. Depois de 1999, lembra a Global Invest, quando o dólar explodiu sob o peso de um rombo de bilhões de dólares nas contas externas brasileiras, manteve-se a política de juros altos para esfriar a demanda doméstica e segurar os preços.

Oportunidade perdida

Sem consumo, as empresas não teriam como repassar altas de preços aos seus produtos, contribuindo para derrubar a inflação, raciocinava a equipe econômica. O que deveria ser uma política de transição, adotada momentaneamente para conter um surto temporário de avanço inflacionário, transformou- se numa política permanente, que continua produzindo danos também permanentes para a economia, aponta a consultoria.

Os consultores da Global avaliam que a queda dos juros poderia ter sido iniciada ainda antes de junho do ano passado e deveria ter ocorrido de forma mais acelerada, nos meses seguintes, pegando uma carona no cenário mais do que favorável na área externa (crescimento das principais economias mundiais, taxas de juros em níveis recordes de baixa nos Estados Unidos e países europeus e sobra de recursos em todo o mundo).

Por excesso de conservadorismo do Banco Central, o Brasil perdeu a oportunidade de recuperar a capacidade de fazer a economia crescer e de acumular reservas em dólares para enfrentar uma fase menos brilhante da conjuntura internacional. “Novas quedas de juros, se acontecerem neste ano, só devem ocorrer no segundo semestre”, comenta uma analista da Global Invest.

Juros consumiram 41% da riqueza

A política de juros escorchantes empurrou a economia para um círculo vicioso de endividamento e rombos nas contas do setor público, constata a Global Invest. “Os juros altos exigidos pelo modelo deprimem a atividade econômica e promovem a elevação da dívida pública. O tamanho da dívida perpetua a grande necessidade de financiamento do setor público (leia-se, promove o constante crescimento do déficit público)”, afirma a consultoria.

Para pagar os juros da dívida, o governo acaba “sugando os recursos disponíveis na economia, inviabilizando seu crescimento”. Detalhe: o peso dos juros nos gastos do setor público invalida o esforço realizado para “economizar” o dinheiro dos impostos e mostrar aos credores, lá fora, que o governo tem condições de pagar o que deve, além de criar mais dívidas.

No ano passado, num exemplo, o setor público - incluindo os governos federal, estaduais, prefeituras e suas estatais - poupou o equivalente a R$ 66,2 bilhões - um recorde, correspondente a 4,37% do Produto Interno Bruto (PIB), que retrata toda a riqueza produzida pelo país em um ano.

Rombo cresce

A economia foi realizada às custas de um aperto nas despesas e cortes de investimentos essenciais. Toda aquela dinheirama foi destinada ao pagamento de juros da dívida e, mesmo assim, não foi possível honrar toda a conta, já que os gastos com juros somaram R$ 145,2 bilhões, deixando um rombo de R$ 79 bilhões (5,2% do PIB).

Para pagar o restante da conta (R$ 79 bilhões), o governo teve que emitir novos títulos públicos e vendê-los ao mercado, oferecendo juros altíssimos aos compradores (bancos, corretoras, fundos de investimento, empresas e pessoas físicas). A emissão de títulos engorda a dívida pública, o que gera mais despesas de juros e exige novas emissões, numa bola de neve. Na verdade, portanto, os juros transformaram-se no principal inimigo do equilíbrio das contas públicas, tão festejado pela equipe econômica.

Mais dívida

Entre 1998 e abril deste ano, o país gastou R$ 620,6 bilhões apenas para pagar os juros da dívida pública, consumindo, nesta operação, o correspondente a 40,9% das riquezas e do patrimônio gerados pela economia brasileira em 2003. No mesmo período, o arrocho nos gastos e investimentos públicos produziu uma economia (superávit primário, em economês) de R$ 264 bilhões, suficientes para pagar apenas 42,5% das despesas criadas pelos juros. Resultado: acumulou-se um rombo de R$ 356,6 bilhões.

O buraco aberto na contabilidade do setor público pelos juros foi responsável por praticamente 58% do crescimento da dívida pública no período (ou seja, os juros criaram novas dívidas, que geraram mais juros). Enquanto o setor público corre atrás do próprio rabo, a dívida pública total mais do que triplicou, saindo de R$ 308,4 bilhões, em dezembro de 1997 (33,8% do PIB), para R$ 926,4 bilhões, em abril deste ano (56,6% do PIB) - um crescimento equivalente a quase R$ 618 bilhões. Torrou-se 40,8% do PIB em 76 meses (mais de R$ 8,1 bilhões por mês) para fazer mais dívida.

Publicado no semanário "Brasil de Fato"