Pouco antes do início das atividades do Fórum Social Mundial de 2006, etapa Caracas, a principal via de acesso do aeroporto de Maiquetía a Caracas bateu as botas. A interdição do viaduto de número 1 na estrada Caracas-La Guaira ajuda a entender um pouco a tensão social no país. O problema no viaduto é resultado de um descuido histórico com investimentos em infra-estrutura.

Porém, a via alternativa para se chegar à cidade, conhecida como “estrada velha”, é um caminho importante para entender a natureza do governo Chávez e, claro, de sua oposição, que saiu às ricas ruas do leste de Caracas, no domingo (22 de janeiro), aproveitando a presença expressiva de jornalistas estrangeiros na capital da Venezuela.

Estamos nas vésperas de mais uma edição do maior encontro mundial das esquerdas, que promete muita tensão, interna e externa. No interior do próprio FSM, os movimentos que o organizam estão tensionados sobre a urgência, ou não, de partir para uma agenda global antiimperialista, que encontra resistências importantes, principalmente entre algumas Ongs.

Na cidade de Caracas, a tensão é protagonizada pela oposição a Chávez, que se dedicou, neste domingo, a disputar a vitrine midiática internacional já à disposição, enquanto o Fórum não começa. A passagem pela estrada velha ajuda a compreender não só as reivindicações da oposição a Chávez, mas sobretudo o que elas interditam.

A lista das interdições é vasta, a começar pela reiterada recusa da oposição em participar dos processos eleitorais no país, desde sua derrota no referendo de agosto de 2004. A reivindicação pela mudança no Conselho Nacional Eleitoral, antes da próxima eleição para presidente, em dezembro de 2006, é a expressão robusta da mais eloqüente das interdições, que a passagem pela estrada velha mostra. Passam-se horas dobrando curvas, subindo morros que muito se parecem com as favelas no Brasil, da Rocinha ao Alto Zé do Pinho, no Rio e no Recife.

Pobreza, amontoamento das habitações, sujeira. Ao se chegar na capital, o cenário não muda muito, começando pela sujeira nas ruas. A estrada velha, como o nome indica, não é uma criação de Chávez, mas as escolhas de seu governo, nessa direção, explicitam a natureza da recusa hoje vista nas ruas do leste de Caracas.

Mesmo sem Chávez ter expropriado um clip de papel, os brados anticomunistas se podiam ouvir da fila para o bilhete do metrô às ruas dos bairros ricos e nada charmosos, da capital. A raiva e a agressividade são tamanhas que poderiam confundir a respeito das intenções de defesa da democracia presentes na marcha da oposição. Algumas curiosas bandeiras venezuelanas ostentadas como diante de uma batalha épica, porém, ajudam a dirimir qualquer confusão. Começando por uma mulher, fantasiada da estátua da liberdade americana, com as cores da Venezuela, que denunciava o fim das instituições e a falta de democracia, aos gritos, desfilando seu figurino “libertário” pela rua e para as câmeras.

Adiante, alguns passos depois, uma senhora de uns 70 anos mostra a sua bandeira venezuelana, nas cores azul, vermelho e amarelo, respectivamente representados por um paletó, um lenço tipo gravata e um reluzente e pesado colar de ouro. Bandeiras cuja nitidez pretende competir ferozmente com a pobreza e as políticas sociais do governo, nas regiões pobres, como as que circundam a estrada velha...

É uma competição feroz, que conta com o apoio explícito dos Estados Unidos, através de algumas organizações, cujas agendas comportam um conjunto de interdições. Uma dessas organizações é a SÚMATE, que se define como empenhada no fomento da liberdade individual e da expressão do livre pensamento, que foi uma das responsáveis pela marcha da oposição. Só para esse ato, ela contou, como admitiu com tranqüilidade sua jovem líder Maria Corina Machado, com 35 mil dólares do governo americano.

Entre os outros fomentos dessa importante organização literalmente terceirizada, cuja líder se apresenta como alternativa às figuras desgastadas da direita venezuelana, podem-se ler os recolhimentos de assinaturas para o referendo, o “diagnóstico do registro eleitoral permanente”, e a curiosa missão de outorga da Constituição a todos os venezuelanos. Como se sabe, a outorga da Constituição a todos os cidadãos não compete a um organismo terceirizado realizar, salvo quando não há democracia. Seria isso o que se quer, com a recusa da via eleitoral?

Junto ao nada inofensivo jogo de palavras desse organismo terceirizado, está sob a rubrica “projetos”, um “programa educativo”, que não merece nenhuma linha a mais, porque assumiu a forma de um paroxismo que seria só ridículo, não se tratasse desse tipo de terceirização. Pois então, durante a marcha da oposição, Maria Corina estava posta num estúdio de tevê, ao vivo, celebrando o feito e, claro, denunciando a interdição da liberdade de expressão...

Como se pode ver, só numa ditadura mesmo é possível estar na tevê, em programa exclusivo e não gratuito, denunciando o cerceamento da liberdade de expressão. É muito ridículo e é muito brega, também, porque o paradigma desse pessoal branco – o corte racial, na marcha da oposição, era tão nítido como suas posições "democráticas" – é Miami. Tudo muito dourado e cor de rosa, com muita maquiagem nas peles de certa idade, botas sob o calor ameno, mas calor, chapinhas nos cabelos louros compridos e pintados, e um certo suor desconcertante da indumentária toda.

Noves fora essas observações estéticas nada fúteis, está em curso uma reação, ou uma financiada tentativa de reação, que não aceita perder pela via eleitoral. Nenhuma novidade na história da América Latina, carregada de pontes jamais construídas e de viadutos condenados, salvo por um detalhe: as escolhas de direção que o governo chavista pôs em curso, sob a alcunha de uma peculiar revolução, que se “inventa”, como disse Gilberto Maringoni, no seu “A Venezuela que se inventa: poder, intriga e petróleo" (Perseu Abramo, 2004)”.

O dia da marcha da oposição para os jornalistas internacionais que estão em Caracas na cobertura do FSM foi também o dia de dois outros símbolos. Um, de uma interdição que se apagou, outro – esperamos –, de uma permissão que começa a brilhar. O primeiro, apagado pelo caráter irascível e terceirizado da marcha da direita, seria a data do fim da ditadura de Pérez Jiménez, em 1958, que as forças políticas hoje na oposição reivindicavam para si como marca de uma certa Venezuela, que se dominou desse 23 de janeiro até a ascensão de Hugo Chávez, e das escolhas progressivamente nítidas que seu governo vem fazendo, em direção da imensa maioria muito pobre, do país. O segundo, acompanhado por inúmeras tevês da cidade, nos bares, restaurantes, cafés, foi a poderosa posse de Evo Morales, na Bolívia.

Um garçom do restaurante Infinity Café não saía da frente da televisão. Já estava de folga do expediente do domingo e assistia, em pé, ao discurso de Evo no parlamento boliviano. Olhou-me e perguntou de onde vinha, para depois interrogar: “No Brasil, as pessoas estão preocupadas com a integração?”. Respondi que essa era uma preocupação de alguns setores da sociedade, mas não um assunto que preocupasse a todos, exatamente. Então, Idan Soto, 41 anos, começou a falar sobre a vida que se quer interditar nas “estradas velhas” da Venezuela: “Aqui, o camponês que vive nos recantos mais distantes e nós, que trabalhamos na cidade, estamos preocupados com isso. A integração para nós é muito importante. Você não sabe a situação de miséria e fome que se vivia aqui. Famílias inteiras comiam areia, farinha de milho e água, porque não tinham o que comer.” E hoje? “Hoje existem as Casas Comunitárias, que oferecem refeições a essas pessoas. Elas não passam mais fome.” Gratuitamente? “Sim, gratuitamente. Você sabe o que é Mercal? (Missão governamental criada para assegurar abastecimento de alimentos à população a preços mais baratos, que hoje é a maior rede de supermercados da Venezuela). Eu compro lá porque é mais barato, lá tem frango, tem até carne. E os preços são melhores.”

Perguntei-lhe sobre a marcha da oposição, o que ele achava, ao que me respondeu, tranqüilamente: “eles dizem que são a maioria, mas são uma minoria, que dominava tudo, que ainda têm muitas terras improdutivas, onde não plantam nada”, para começar a falar da reforma agrária, que dá os primeiros passos, no país. “Agora, não precisamos nos desesperar, quando nossos filhos ficam doentes, porque não podemos pagar uma clínica. Os médicos são nossos vizinhos, eles estão lá, no nosso bairro! É isso o que está mudando a vida de muita gente, e é por isso que precisamos de integração.”

A missão governamental Bairro Adentro, resultado de um acordo entre os governos da Venezuela e de Cuba, enviou mais de 6 mil médicos para cá, buscando pôr fim à interdição da saúde pública a todos os venezuelanos. As missões governamentais vão do abastecimento e da segurança alimentar à qualificação profissional de desempregados, aliadas a iniciativas de economia solidária, além da erradicação do analfabetismo. São pontes novas, em estradas velhas, para a superação das vias interditadas da Venezuela, que a oposição insiste em recusar o que não consegue reconhecer, como democracia.