Os grandes temas que os cubanos debatem hoje nas ruas do país não são de política externa ou interna. Não tem a ver com a situação dos EUA no Iraque ou sobre temas de abastecimento interno. Eles vêm de uma minissérie de televisão, com temas audazes para a sociedade cubana, que suscita polêmicas exacerbadas, a favor e contra. Na série chamada “O outro lado da lua”, cada capítulo aborda um tema controvertido e tem sido reprisada em outros horários, para que todos, nos seus distintos horários de trabalho, possam ver e opinar.

Na primeira história, uma menina, nas vésperas da longa preparação do seu aniversário de 15 anos – toda uma cerimônia tradicional que perdura em Cuba -, revela para a família que teve uma relação sexual que lhe transmitiu aids. Se desmorona o sonho dos pais de consagração virginal da filhinha numa festa de apresentação à sociedade e todos têm que se ver com um fenômeno concreto, que se choca com todas as expectativas da família.

Numa sociedade que conseguiu circunscrever e controlar a difusão da aids, pela efetividade incomparável da sua medicina social – a melhor do mundo -, com os mais baixos índices de morte por essa doença, ainda assim o risco e a presença real da aids encontram grandes dificuldades para serem enfrentados. Tanto na família, quanto nas relações sociais – na escola, entre os amigos -, pelos preconceitos gerados e pelas conseqüências que a doença traz. O choque de ver caras tão familiares enfrentando um problema que todos querem ver longe da sua vida concretizou de forma dramática para os cubanos os problemas da tolerância – já presentes fortemente em “Morango e chocolate”.

No entanto, se nesse filme – o mais visto na história do cinema cubano, com espectadores que somam mais da metade da população da Ilha -, se tratava da história de dois amigos soltos, mais ou menos desvinculados das suas famílias e das suas vidas cotidianas. Enquanto que a minissérie provoca mais as reações, porque trata de temas a partir de circunstâncias dramáticas vividas por famílias cubanas.

No segundo episódio, vivido por um casal ideal, de meia-idade, muito amoroso e companheiro, até que a partir de um acidente no trabalho, o marido conhece uma pessoa que o socorre, também de meia-idade, que se revela ser um homossexual, com o qual ele passa a desenvolver uma relação. O tema não caiu com menos tom polêmico que o anterior, com reações desde as que dizem que “se trata de um mau exemplo, que não deveria ser difundido”, até os que saúdam a abordagem de temas até aqui quase clandestinos na sociedade cubana.

O certo é que os choques da minissérie – que ainda contará com três capítulos mais – são muito saudáveis, em uma sociedade que conquistou direitos como o direito ao aborto, ao divórcio, que atende a toda sua população com assistência médica e psicológica. Mas que tem que encarar de forma aberta os novos problemas colocados pela liberalização das relações afetivas e sexuais e o faz sem medo das polêmicas e dos conflitos que expõe sem repressão.

Mas há um outro lado que também faz parte do cotidiano dos cubanos com uma presença cada vez maior. Se trata da Operação Milagre. A partir dos extensos serviços de saúde prestados pelo pessoal cubano na Venezuela, constataram a enorme quantidade de pessoas – em geral pobres e muito pobres – que tem problemas de visão, sem se dar conta disso. Ao levar para tratamento em Cuba a pacientes de outras doenças, com um acompanhante, aproveitavam para fazer exames médicos deste e constataram, via de regra, problemas de visão às vezes muito graves.

Estabeleceu-se, a partir daí, vôos semanais de venezuelanos para serem operados da vista, que regressavam uma semana depois com a visão totalmente recuperada. Daí o nome de Operação Milagre. Dezenas de milhares de venezuelanos já se beneficiaram da Operação e recuperaram a visão. Esse procedimento foi estendido aos bolivianos e a outras nacionalidades. Para o que foi necessário que os cubanos utilizassem parte significativa dos quartos dos hotéis de turismo, para abrigar aos pacientes e seus acompanhantes, que ficam em Cuba por uma semana.

Mesmo com uma demanda recorde de turismo – Cuba superou o objetivo inédito de ter 2 milhões e 200 mil turistas em 2005 -, ainda assim, pela prioridade social e de solidariedade internacionalista, 1.700 quartos dos hotéis de turismo central em Havana estão destinados aos pacientes. Estes são atendidos gratuitamente pelos hospitais e clínicas cubanas, realizando até 500 operações diárias, em um formidável exemplo de triunfo da medicina socializada cubana.

Como critério de comparação entre os critérios mercantis e os socializados na medicina, em um artigo publicado no New York Times, o editorialista Nicholas D. Kristof afirmou que “se os Estados Unidos tivessem a mesma taxa de mortalidade infantil que Cuba, 2.212 crianças estadunidenses sobreviveriam a cada ano”. Deu no New York Times. Alguém leu a notícia na imprensa brasileira?

A medicina socializada é o “santo” da Operação Milagre, a outra cara de Cuba, escondida atrás da mentira do silêncio sobre a Ilha.