O futuro do processo de integração da América do Sul vai muito além da assinatura de acordos comerciais e protocolos de intenções. Estes são passos necessários sem dúvida, mas absolutamente insuficientes para atingir o que todos querem. E o que todos querem afinal?
A decisão do governo boliviano de nacionalizar as reservas de gás e de petróleo trouxe para a ordem do dia o debate sobre o projeto de integração da América do Sul. A inevitável contaminação política-eleitoral desse debate, no cenário brasileiro, contribuiu para encher de fumaça o ambiente e misturar alhos e bugalhos. Um dos sub-produtos indesejáveis desta contaminação foi o florescimento de sentimentos chauvinistas e nacionalistas que acabaram por reduzir o tema da integração a algo muito menor do que ele é na verdade. Infelizmente, setores da mídia têm contribuído para alimentar essa confusão, transformando factóides em verdades, ignorando informações fundamentais e criando monstros onde o que há são diferenças regionais, desigualdades, assimetrias econômicas e questões históricas cuja complexidade não pode ser traduzida por estereótipos, simplificações e preconceitos.
A mistura destas três figuras – estereótipos, simplificações e preconceitos – produz fenômenos bizarros. O presidente boliviano, Evo Morales, já foi retratado por chargistas brasileiros como um fora-da-lei, aliado do Primeiro Comando da Capital (PCC), ou, pior ainda, como uma variante indígena do nazismo. O preconceito racial sobre o fato de um “índio” que não usa gravata chegar ao poder não consegue nem ser disfarçado. As declarações patrióticas contra Evo e Hugo Chávez multiplicaram-se pela mídia. A política externa brasileira foi taxada, ao mesmo tempo, de ingênua, populista e incompetente. E alguns fatos fundamentais ficaram à sombra. Um dos principais foi aquele que informa que a escolha brasileira pelo gás boliviano não foi uma invenção do atual governo, mas sim do anterior que assinou os contratos para a construção do gasoduto. Outro foi o de que a Bolívia está tentando fazer o que todos os grandes países fazem, a saber, tentar defender seus interesses estratégicos. O problema parece ser: quem são os bolivianos para ter essa pretensão?
Tentando limpar o terreno
Mas toda essa fumaça carregada de estereótipos e preconceitos serve ao menos para uma coisa, a saber, mostrar a complexidade e as imensas dificuldades colocadas diante de qualquer projeto de integração regional. Basta fazer uma conta simples: tome-se todas essas manifestações, no âmbito da sociedade brasileira, e multiplique-se pelo número de países do território a ser integrado. O resultado dessa operação é um aglomerado de sentimentos chauvinistas, visões distorcidas e simplificações. Como se isso não bastasse, é preciso considerar ainda os diferentes interesses em jogo e as assimetrias reais entre as economias da região. Assim, o primeiro passo para tentar entender o que está em jogo nestes processos de integração é tentar limpar o terreno o máximo possível, uma tarefa que sempre permanecerá incompleta. Esse é um dos trabalhos mais importantes da diplomacia, trabalho esse que tem uma dificuldade crônica de comunicação com a sociedade.
Um dos primeiros passos para essa limpeza de terreno é reconhecer que não existe somente um projeto de integração no continente americano. Segundo o professor Marco Cepik, pesquisador na área de política internacional e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), há três grandes projetos em disputa no continente (sendo que dois deles com capacidade de articulação entre si): o da Área de Livre Comércio das Américas (defendido pelos EUA e atualmente bastante enfraquecido, principalmente a partir do resultado da última Cúpula das Américas, realizada em Mar del Plata), o da Alternativa Bolivariana para as Américas (proposto pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, com o apoio já declarado de Cuba e Bolívia), e o da Comunidade Sul-Americana de Nações (que expressa, em suas linhas gerais, a posição brasileira). Não há uma incompatibilidade entre esses dois últimos, mas tampouco há um alinhamento automático.
Alba e mercosul
O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, é o principal defensor da necessidade de uma articulação entre a ALBA e o Mercosul, como eixo em torno do qual se constituiria a Comunidade Sul-Americana de Nações. Essa semana, a Venezuela deu um importante passo nesta direção, ao assinar, em Buenos Aires, um protocolo que estabelece a adesão plena do país ao Mercosul. Através desse protocolo, a Venezuela estabeleceu um prazo de quatro anos para se integrar completamente ao bloco sul-americano, com todos os direitos e obrigações decorrentes desta condição. Segundo o documento assinado em Buenos Aires, Brasil e Argentina se comprometeram a eliminar tarifas para o comércio com a Venezuela até 1° de janeiro de 2010. Em troca, e levando em conta as assimetrias entre as respectivas economias, a Venezuela eliminará as tarifas sobre produtos brasileiros até 1° de janeiro de 2012. E a Bolívia pode seguir o mesmo caminho da Venezuela, ingressando no Mercosul como membro-pleno.
O protocolo de Buenos Aires confirma o afastamento da Venezuela da Comunidade Andina das Nações (CAN). Chávez decidiu abandonar a CAN após a decisão dos governos do Peru e da Colômbia de assinar Tratados de Livre Comércio com os Estados Unidos. Mas, se por um lado, Chávez se aproxima do Mercosul, por outro, ele toca sua agenda própria, tendo Cuba como um parceiro central. Essa semana, Chávez e o vice-presidente de Cuba, Carlos Lage, acertaram oito convênios para a execução de projetos sociais e produtivos na Bolívia. O governo boliviano assinou com Venezuela e Cuba o Tratado de Comércio dos Povos (TCP), como alternativa ao Tratado de Livre Comércio (TLC) proposto pelos Estados Unidos. O TCP pretende priorizar objetivos sociais, principalmente nas áreas de educação e saúde, respeitando a soberania de cada Estado. Seu horizonte estratégico é a constituição de um eixo político reunindo os governos dos três países na direção da construção da ALBA.
Venezuela e Cuba oferecem não somente ajuda para projetos econômicos, mas também apoio para planos sociais, como o programa de cirurgias oftalmológicas “Operação Milagre”, que já atendeu a mais de 800 pessoas na Bolívia. Cada operação custa entre 500 e 800 dólares na Bolívia, chegando a 2.200 dólares em outros países. Os programas sociais também incluem planos de alfabetização. Com o apoio desses dois países, a Bolívia pretende ser declarada zona livre de analfabetismo em 2007, enquanto que a Operação Milagre pretende atender cerca de 100 mil pessoas. Médicos cubanos estão trabalhando no país, assim como ocorre na Venezuela. Quando eles saírem os centros médicos especiais seguirão operando com médicos bolivianos. Essas políticas não representam, obviamente, nenhum antagonismo em relação aos projetos do Mercosul e da Comunidade Sul-Americana de Nações. Deveriam ser largamente divulgadas e elogiadas pela sua repercussão social, o que não ocorre, pelo menos não entre os grandes meios de comunicação no continente.
Os problemas do mercosul
Mas a seletividade midiática não é o principal obstáculo aos projetos de integração da América do Sul. Há problemas concretos e complexos entre os países do continente, como aqueles envolvendo Uruguai e Argentina em torno da questão das indústrias de celulose, e aqueles envolvendo Uruguai e Paraguai, de um lado, e o resto do Mercosul de outro. Esses dois países reclamam que as assimetrias econômicas entre eles e os dois maiores países do bloco, Argentina e Brasil, não estão sendo resolvidas, e reivindicam o direito de assinar Tratados de Livre Comércio bilaterais com outros países, o que é vetado pelas regras do Mercosul. O Uruguai está em vias de assinar um tratado bilateral de comércio com os EUA e já ameaçou sair do bloco. Na avaliação de Marco Cepik, essa é uma ameaça real e independe da coloração política do governo. Segundo ele, o Uruguai vive uma situação sui generis e não tem muitas alternativas para crescer no curto prazo.
“É um pequeno país que virou uma plataforma exportadora de uma ou duas commodities. O que foi o gado em um passado recente hoje está passando a ser a celulose”,avalia. Quando o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, expressa simpatia pelo modelo chileno, isso não ocorre por acaso. “O modelo chileno funciona bem para um país pequeno como o Uruguai, cuja população é menor do que a do Rio Grande do Sul. Num país com esse perfil, duas plantas industriais podem fazer toda a diferença”, diz Cepic, numa referência à polêmica envolvendo a instalação de fábricas de celulose na região do rio Uruguai. O conflito entre a Argentina e o Uruguai foi parar na Corte de Haia e, dias atrás, Tabaré Vázquez disse, rispidamente, que não havia mais o que conversar com Buenos Aires. Eis aí, um problema real para o Mercosul resolver, um problema que diz respeito também ao resto do continente, principalmente pelo tipo de solução que vier a ser dado a ele.
Lacunas institucionais e culturais
A resposta aos problemas passa pela superação de deficiências que seguem atrapalhando o Mercosul, entre elas a ausência de um Tribunal de Arbitragem e de um parlamento ativo. São duas instâncias indispensáveis em qualquer bloco regional e, é claro, não são construídas da noite para o dia. Mas os déficits não são apenas institucionais. Há alguns, de natureza histórico-cultural, que nós, brasileiros, conhecemos bem. O Brasil “descobriu” seus parceiros de língua hispânica há pouco tempo. E trata-se de uma descoberta ainda tímida e insuficiente. Conta-se que o escritor Eduardo Galeano não gostava (talvez ainda não goste) de dar entrevistas para jornalistas brasileiros pois eles desconheciam completamente a história de seu país. Não é um problema exclusivo dos jornalistas, é verdade. Se mal conhecemos a história de nosso próprio país, o que dizer em relação aos nossos vizinhos. E quando a ignorância se mistura ao preconceito, não há integração possível.
Assim, o futuro do processo de integração do continente vai muito além da assinatura de acordos comerciais e protocolos. Estes são passos necessários sem dúvida, mas absolutamente insuficientes para atingir o que todos querem. E o que todos querem afinal? Uma boa resposta a essa pergunta é dada pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário geral de Relações Exteriores do Brasil. Em seu novo livro “Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes”, ele escreve a propósito dos objetivos centrais da política externa brasileira: “Os quatro grandes desafios do Brasil são a redução, gradual e firme, das extraordinárias disparidades sociais, a eliminação das crônicas vulnerabilidades externas, a construção do potencial brasileiro e a consolidação de uma democracia efetiva, em um cenário mundial violento, imprevisível e instável”. Essa caracterização se aplica também, em maior ou menor grau, a todos nossos vizinhos da América do Sul. Compreendê-la como um desafio comum seria um passo gigantesco na direção da integração do continente.
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