No tempo em que o marxismo andava em moda, quando a miséria incomodava e o socialismo apontava uma saída para uma vida melhor, dizia-se que o mercado controlava “as relações de produção”, consideradas “o motor da história”.

Bem, o socialismo evaporou-se, o marxismo saiu de moda e a miséria aumentou assustadoramente. Então o que aconteceu? Já não queremos uma vida melhor para todos? Devagar com o andor. O mercado aprimorou-se, reduziu a distância entre a coisa física e a semântica, e agora procura nos convencer de que a saída para uma vida melhor... é uma questão individual (qualidade de vida) e avisa que acabou o combustível que abastecia o motor da história. Assim, o mercado já não influi apenas nas relações de produção. Influi em todas as relações: familiares, afetivas, sexuais, políticas, religiosas... (Em tempo: que Deus e o Estado se preocupem com os miseráveis...).

O que há de novo é que agora o mercado não lhe vende um carro, uma roupa ou um sorvete. Vende você. Isso mesmo. Todo produto reflete a nossa alma e o nosso espírito. E antes de nos dar conta de que temos consciência e subjetividade, redutos do Mistério, o mercado trata de personalizar de tal modo os produtos, a ponto de o consumidor só se sentir completo quando deles se apossa. Ou será que você não se sente um pouco triste quando fica privado uma semana do seu carro ou não encontra seu xampu preferido?

No prefácio à segunda edição de Gaia, Nietzsche lamenta a progressiva perda do “pudor com o qual a Natureza se escondia atrás de véus e enigmas”. O Mistério é uma experiência em extinção. Agora queremos desvendar todas as verdades, ver tudo, saber de tudo. Antes que façamos a pergunta, o mercado já apresenta a resposta. Todas, do tratamento de rápido emagrecimento (fica decretado que gordura é falta de educação) ao esoterismo que aplica a Leonardo Da Vinci a fórmula de produzir Harry Potter para adultos.

Não há nenhum reduto da experiência humana que escape ao mercado. Em seu poder semântico, ele se antecipa aos nossos desejos: não oferece um carro, mas requinte; não o refrigerante, mas o sabor refrescante; não o desodorante, mas um toque de classe. Assim vamos nos revestindo de produtos fetichistas que nos imprimem valor, status, identidade. Como disse Montaigne, ninguém compra um cavalo por causa da beleza do arreio, mas em se tratando de seres humanos não valemos pelo que somos, e sim pelo que demonstramos possuir.

O mercado apela à nossa libido e à nossa tendência à violência. Não quer apenas que possuamos os objetos, induz-nos a destruí-los. Já não haverá museus para os objetos da pós-modernidade. Todos são destrutíveis ou, para usar o jargão da moda, descartáveis. São feitos para serem subjugados, devorados, agredidos. Feitos para exaltar a nossa suposta onipotência, de quem não deixa pedra sobre pedra, descarta tudo, família, amigos, colegas de trabalho, parceiros sexuais...

O mercado teme que decidamos virar-lhe as costas e caminhar para aquele lugar em que ele não pode jamais chegar, e ainda que chegasse nada teria a dizer: a contemplação do Mistério.

Na falta do Mistério, só nos resta essa incessante objetivação na qual antecipamos, ao dar vazão aos nossos instintos assassinos, a nossa própria morte. Como numa corrida de Fórmula 1, vencer não é importante, o que interessa é imprimir mais e mais velocidade à existência.

Conta a fábula que Afrodite afastou seu filho Eros da amada Psique. Apaixonada, esta aceitou submeter-se às mais duras provas para demonstrar que era digna daquele homem. Selecionou as sementes que enchiam o depósito da casa de Afrodite; cortou a lã das ovelhas que pastavam num vale distante; buscou água do mais inacessível manancial da montanha.

Afrodite impôs-lhe mais uma prova: ir até o inferno e dizer a Proserpina que Afrodite ansiava por um pouco de sua irresistível formosura e, portanto, pedia que lhe enviasse seu ungüento mágico. Psique recebeu ordem de não abrir o pote no qual levaria a poção da beleza. Superando mil perigos, e com a ajuda de Caronte, Psique atravessou o rio dos mortos e chegou à terra de Tártaro. Obteve o ungüento mas, na volta, não resistiu à tentação, abriu o pote e experimentou uma pitada daquela maravilha que a tornaria irresistível para Eros.

A beleza excessiva foi a causa de suas desgraças. Não queria ser bela em si mesma, mas só aos olhos do amado. “Minhas aventuras o comoverão - dizia ela -, meus atos o farão me admirar, mas só a beleza me fará irresistível para ele”. Após abrir o pote e untar o rosto, Psique caiu num sono profundo como a morte.

A publicidade nos oferece todos os ungüentos e nos promete toda a beleza. Aos olhos alheios. Mas o que ou quem preencherá o vazio do coração?