"E depois, o que fazer?" Essa deve ser a pergunta a ser feita permanentemente para avançar e aprofundar qualquer processo revolucionário. Essa é a avaliação do ex-ministro venezuelano de Educação Superior, Hector Navarro. "Se em uma revolução não se formula essa questão, corre-se o risco de retroceder". Um dos homens de confiança do presidente Hugo Chávez, o engenheiro mecânico -único ministro que permaneceu no governo desde o inicio, em 1999- deixa o cargo para se reitegrar às atividades acadêmicas na Universidade Central da Venezuela. Para Navarro, ideólogo da Missão Sucre que levou à universidade 250 mil jovens, a qualidade e a revolução não são antagônicos, mas adverte que "sem justiça não pode haver qualidade". Para ele, é preciso colocar os meios de produção nas mãos dos trabalhadores para avançar a revolução. "É preciso mudar a lógica do capital para a lógica do trabalho. O trabalhador é o objeto dessas mudanças. Tudo isso é aprofundar a revolução".

- Que tipo de revolução é essa? Como podemos defini-la?

- Do ponto de vista teórico e conceitual não existe uma definição completa do que é o bolivarianismo. Na história das revoluções, acredito que um erro comum em todas elas, incluindo a Revolução de Outubro dos bolcheviques, foi que ao chegar ao poder, concluiram que o êxito da revolução os conduziria à etapa final de desenvolvimento humano. Na revolução soviética, quando os líderes tomaram o poder não colocaram em prática o materialismo dialético. Acreditaram que com eles a história chegava ao seu fim. Não foram mais além de um determinado ponto, em termos teóricos. Não responderam à pergunta: e depois, o que fazer? Uma revolução deve olhar sempre para o futuro. Se uma revolução não se formula essa pergunta corre o risco de retroceder.

- Qual é o horizonte quando se trata do futuro da revolução bolivariana?

- A revolução deve ser humanista, do povo, para a maioria. Precisamente o atalho em que se transita nesse momento. Tem que ser uma revolução baseada na liberdade do povo, profundamente igualitária e justa, uma justiça que garanta o bem estar. Podemos tomar a revolução de Bolívar como um ponto de partida, mas se deve desenvolver esses ideais e metas mais além. O projeto da "Missão Sucre" (bolsas universitárias) não era um problema que Bolívar teve que enfrentar no seu tempo. Para ele o problema era a educação básica. Não estava sugerindo um tipo de desenvolvimento tecnológico que propomos hoje.Para onde vai essa revolução do ponto de vista estratégico é dificil prever. O que está bem claro é que deve evoluir. Deve representar um movimento comprometido com o humanismo no nível mais profundo, um movimento que respeite as idéias, à diversidade de culturas, não à hegemônia cultural.

- Qual a relação entre o que deve ser esse processo e a realidade vivida hoje na Venezuela?

- Acredito que em curto e médio prazo estamos avançando para esta visão. O primeiro exito foi a Constituição de 1999. Essa Constituição com todas as falhas que pode ter dá passos para uma missão profundamente honesta. Em um fórum na Espanha, onde se discutia a Constituição bolivariana, um juíz constitucionalista de direita me disse que sua principal crítica é que a Cosntituição era utópica demais. Isso é muito importante. Esta foi a crítica mais importante que se formulou neste fórum porque na perspectiva da direita esse juiz quiz dizer: "é natural que os humanos sejam injustos e que o mundo também o seja. É natural que alguns imponham seus direitos em detrimento dos demais, que uns explorem os outros. É assim funciona o mundo". Por conseguinte, esta Constituição, sob essa avaliação, não é realista, é utópica porque não concorda com a ’lógica da natureza’". Eu discordo disso. Sempre se deve olhar à uma utopia, mas com os pés na terra, sobre a realidade do presente, sempre olhando para onde se quer chegar.

- O que significa a nova meta que se escuta em todo o país que é a de aprofundar a revolução bolivariana?

- O presidente Hugo Chávez tem sido muito claro. Disse: "Devemos aprofundar a lei de terras", e isso deve ser feito. Quando aprovamos a lei de terras na Assembléia Nacional vários deputados alteraram a lei, a modificaram para que na prática não fosse a lei que originalmente consideramos que era necessária. De modo que essa lei deve ser modificada e isso significa que devemos melhorar a produtividade, dar aos pequenos agricultores acesso à crédito, desenvolver tudo que constitui uma economia social. Desenvolver cooperativas e o cooperativismo, facilitar o acesso à créditos para o povo, acesso à tecnologia e colocá-la a serviço do povo, nas mãos do povo. Aprofundar a revolução significa fazer mudanças nas relações de produção. Mudar a lógica do capital para a lógica do trabalho. Significa colocar as mãos dos trabalhadores nos meios de produção. Isso não implica confiscar propriedades ou fábricas. O produto social deve se destinar ao financiamento de pequenas e médias empresas, principalmente às cooperativas comunitárias. O trabalhador é o objeto dessas mudanças. Tudo isso é aprofundar a revolução.

- A começar pela reforma do Estado...

- O que temos que entender no processo de reforma do Estado é que não é possível avançar em uma só área por vez. Se dizemos que devemos mudar os ministérios, as burocracias, é preciso ter claro que isso não se pode decretar de cima. Se fazemos isso a iniciativa fracassará porque dentro de cada ministério, dentro de cada setor existem pessoas. São funcionários públicos com uma certa formação cultural da IV República. A essas alturas não existe um só funcionário público da V República (iniciada no governo Chávez em 1999). Por isso, para transformar o Estado devemos lentamente passo a passo ir transformando as pessoas que formam o Estado. Esse tem que ser um processo dinâmico, de aprendizagem, porque ninguém tem experimentado ainda uma revolução da maneira como estamos experimentando agora. Nenhum acadêmico estudou para definir como foi possível para a Missão Sucre colocar 250 mil estudantes na universidade em menos de um ano. Isso significa que nós mesmos teremos que escrever este livro. Este é um processo de construir aprendendo, fazer aprendendo. Essa é uma revolução na forma de um processo educativo. Por essa razão temos a Missão Sucre e centros de treinamento e preparação que rompem com os paradigmas tradicionais do ensino e aprendizagem. Em conseqüência, o estudante que se instrui, toma aulas para aprender a dar aulas, aprende dando aulas. O nosso lema: "A essência da revolução é a educação". Significa que estamos educando pessoas, mas além disso, reenducando-as, criando células comunitárias, redes nacionais, colocando o Estado no seio do povo.

- De que maneira isso será feito na educação?

- Na educação superior devemos "municipalizar" a educação superior. Se todos devem ter direito ao estudo, como de fato acreditamos, o Estado e a sociedade têm a obrigação de colocar nas mãos do povo as ferramentas de estudo. Não pode ser que àqueles que têm acesso à internet em suas casas, tenham vantagem em cima dos que vivem em um bairro pobre, sem linha telefônica e muito menos à internet. É dever do Estado compensar essa situação, colocando computadores nas mãos dos pobres para que ao compar uma pessoa e outra se avalie a diferença de talentos e não de oportunidades. Agora, mais do que nunca temos as ferramentas para aprofundar a revolução.

- Alguns setores no país dizem que os programas de educação não têm qualidade...

- A qualidade é um tema muito importante no qual estamos trabalhando. Não pensamos que a qualidade e a revolução são antagônicas. Durante a II Guerra Mundial os estadunidenses tinham um sério problema: escassez de médicos para atender a imensa quantidade de feridos. Por isso desenvolveram uma estratégia de treinamento para médicos que durou de três a três anos e meio. Aprenderam as áreas básicas: cirurgia, primeiros socorros, traumas básicos. Essa experiência se relaciona de maneira importante com nossa realidade. Temos uma crise humanitária nas mãos. As pessoas sem assistência médica necessitam de atendimento. A situação real exige a presença de médicos treinados. Se alguém necessita de um atendimento de emergência e não tem seis anos de aprendizado vai dizer: Sinto muito mas não posso ajudar porque não estou completamente preparado? Deveria optar por deixar morrer o paciente pela sua noção equivocada de qualidade? Este conceito de qualidade está totalmente divorciado da realidade. Os que promovem este conceito de qualidade estão negando o fato de que na Venezuela como no resto do mundo há universidades e universidades. Inclusive, aparentemente ignoram o fato que agora é possível se graduar pela internet. Onde está a qualidade neste caso? O tema da qualidade é uma hipocrisia. Nesse caso, o oposto à qualidade é a justiça. Sem justiça não há qualidade. Por conseguinte, a qualidade não existe hoje na Venezuela. Se como professor universitário, faço meus experimentos em laboratório esquecendo que eles estão vinculados com as pessoas que estão do lado de fora pode ser que o experimento seja perfeito, mas ilhado. Temos concebido a natureza de maneira mais distinta, mais vinculada com a prática mais relevante. O redesenho da Universidade Bolivariana por exemplo, é uma universidade criada e modelada em todos os sentidos sob os mais avançados conceitos de educação universitária. Aí estão as bases da qualidade.

- No que o referendo contribuiu para a organização popular?

- O referendo nos deu uma estrutura organizacional: as unidades de batalha eleitoral (UBE) e as "patrulhas" distribuídas geograficamente. Esta é a célula básica da sociedade. Graças ao referendo estas estruturas estão aí e fundamentalmente vinculadas com todas as outras células básicas da comunidade como o Bairro Adentro (programa de saúde nos bairros pobres). As instituições públicas estão ilhadas entre si, mas a sociedade deve estar relacionada entre si em uma rede geral. As UBEs e as patrulhas podem fomentar essas redes. Podem atuar como os anexos comunitários necessários entre os distintos elementos chaves entre a sociedade e o Estado. Podem servir para pressionar em prol da reestruturação do Estado. Se esta há de ser uma revolução humanista, como acredito que deve seguir sendo, com freqüência vai gerar a reação de alguns que a classificam como utópica. Bom...é uma utopia... mas uma utopia concreta. Minha hipótese sobre a utopía concreta é o tema da democracia participativa.

- De que maneira têm sido efetivada a democracia participativa nesse processo?

- A proposta de democracia participativa era verdadeiramente uma utopia há 20 anos, porque a realidade venezuelana impedia qualquer transferência de poder de cima para baixo. A democracia participativa é para que cada cidadão participe do processo de tomada de decisões. Para que possa se vincular em alguma missão ou ter contato direto com cada ministério ou com algum serviço público, sem a mediação de um partido político ou sindicato. É criar essa relação direta. Se trata de um Estado praticamente distribuído em todas as partes, que esteja praticamente em cada cidadão. Quando como cidadão eu posso tomar decisões serei parte do Estado. Essa utopia se interpreta como a presença do Estado em cada um dos cidadãos. Não como método para controlar a sociedade e sim como método para que a sociedade controle o Estado. O Estado deve estar presente em cada cidadão, não para se impor, e sim para que a sociedade se aproprie do Estado. Acredito que este é um novo conceito.