Com a apresentação de uma “mística” - como os sem terra batizam sua celebração de simbologismo ecumênico -, realizada no estádio Serra Dourada na manhã desta segunda (2), em Goiânia, os trabalhadores rurais sem terra vindos de diversos estados brasileiros iniciaram a Marcha Nacional pela Reforma Agrária rumo à Brasília. Lançada neste domingo na Praça Cívica do centro de Goiânia, a Marcha vai percorrer os cerca de 220 km da BR 060 que ligam as capitais goiana e federal nos próximos 15 dias.

Esta é a segunda caminhada nacional organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pela reforma agrária no país (a primeira foi em 1997), mas desta vez as bandeiras não se restringem à luta pela terra e o leque de apoios se ampliou. Vários outros movimentos sociais e ONGs se juntaram à Via Campesina e ao MST para essa jornada.

Além de sua histórica bandeira de luta, o movimento está levando uma cartilha de reivindicações com pontos que vão muito além do pedido de assentamentos. Dentre os 16 itens do documento “Proposta do MST, da Via Campesina e dos Movimentos Sociais ao Governo Lula”, há demandas como a de dobrar o valor do salário mínimo para 400 reais a partir deste mês e a redução da taxa de juro (Selic) para 2,5% ao ano (que hoje é de 19,25%). João Pedro Stédile, coordenador nacional do MST, que acabou não fazendo uso da palavra em Goiânia, disse ao final do ato à Agência Carta Maior ser “perfeitamente possível” a adoção dessas medidas pelo governo Lula.

“O povo não agüenta mais ficar subjugado por juros tão altos. Se a Argentina e a Venezuela, que passaram por crises profundas há pouco, podem ter juros decentes, por que o Brasil precisa manter uma taxa de mais de 100% ao ano para a pessoa física ? Sugerimos esse índice [de 2,5%] no documento para provar que é possível mudar, que não é só discurso. Achamos que não é preciso ter vontade política, é preciso ter força política. É por isso que o MST levanta essa pauta econômica para toda a sociedade brasileira”, afirmou o líder dos sem terra.

Segundo Stédile, as várias audiências já agendas pelo movimento nos ministérios do governo vão buscar resolver questões de infraestrutura dos assentamentos. O MST tem agendadas cerca de 30 audiências no mais diferentes ministérios. “São pautas específicas. Por exemplo, na Educação vamos tratar de questões de projetos dessa pasta para os assentamentos do país, na Saúde a mesma coisa e assim nos outros”, explicou o dirigente dos sem terra. Stédile diz que essas reuniões vão acontecer antes mesmo de a marcha chegar à Esplanada dos Ministérios.

Diálogo com o Governo

Para o dia 17, data da chegada da Marcha à capital federal, o presidente Luis Inácio Lula da Silva teria previamente agendada uma audiência com a coordenação nacional do movimento, sempre segundo Stédile. Mas na última quinta-feira, de Montevidéu, no Uruguai, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, mandou um recado sobre a movimentação do sem terra.

Dirceu disse que a marcha do MST contra a política econômica do governo não mudará a estratégia oficial. "Não vamos mudar a política econômica", afirmou Dirceu antes de começar uma reunião com representantes dos governos de esquerda do Cone Sul americano. O chefe da Casa Civil reprisou os argumentos com os quais o governo vem rebatendo as críticas à gestão econômica do país e falou em “mais apoio” à reforma agrária. “Estamos fazendo reforma agrária no Brasil, triplicamos o apoio", disse Dirceu, acrescentando que a política econômica do governo conseguiu um crescimento de mais de 5%, com inflação de 6%, “e criou milhões de empregos”.

Valquimar Reis, também integrante da direção nacional do MST, lembra os números conflitantes de assentamentos entre o atual governo e o movimento, outro dos assuntos que devem movimentar as discussões do MST em Brasília. Para o Planalto, já foram assentadas 81.184 famílias na primeira metade do governo Lula. O MST tem outro dado a mostrar. “O último levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que o número real é 25.735 novos assentados. “Aqui em Goiás, por exemplo, não passam de 200 pessoas assentadas, uma vergonha”, acode e reclama Valdir Misnerovicz, da coordenação regional do MST em Goiás. Segundo Misnerovicz, o estado tem cerca de cinco mil acampados, dos quais mil integram a marcha a Brasília.

Vaias a Iris

Entre apoiadores para a infra-estruturada macrcha, o MST contou com o prefeito de Goiânia e o governador de Goiás. Além de ceder o estádio Serra Dourada, o governador Marconi Perillo (PSDB) mandou providenciar o palco e o som para o ato, mas acabou não comparecendo nem mandando representante. Diferente do que fez o prefeito Iris Rezende (PMDB), que compareceu e discursou no palanque para a multidão colorida de vermelho.

Na chegada, por volta das 16 horas, o prefeito falou com a imprensa sem ser notado. Já no palanque, recebeu as primeiras vaias, que apareciam sob o grito de “Respeito ao POI”, sigla de Parque Oeste Industrial, caso recente de despejo de cerca de dois sem teto de uma área particular invadida em Goiânia. O episódio, que acabou na ação violenta da PM e com a morte de duas pessoas, segue indefinido, com as famílias alojadas em ginásios da capital.

Na saída do palanque, o prefeito Iris Rezende foi abordado por representantes dos sem teto que acompanhavam o ato da Marcha. Auxiliado pelos seguranças, o prefeito deixou rapidamente o local. Vários deputados, vereadores e sindicalistas goianos também falaram no palco. Para a Agência Carta Maior, o presidente da CUT de Goiás, Ailton Gilberto Costa, avaliou como “oportunista”, o apoio dos governos goianos na Marcha. “Primeiro porque eles buscam parecer simpáticos a um movimento de alcance e respeito nacional, mas vêem nisso também uma forma de cacifar o movimento para criticar o governo federal”, avaliou Costa.

Acomodados no estádio Serra Dourada desde o último sábado, os trabalhadores rurais sem terra foram praticamente em peso para a Praça Cívica, no centro de Goiânia. Entoando cantos especialmente compostos para a Marcha, os sem terra caminharam em fila do estádio ao local do ato, o que quebrou a tranqüilidade dominical costumeira no centro da capital goiana.

A programação valeu-se em muito de atrações artísticas de Goiás e do próprio MST, que se revezavam no palco entre uma e outra fala dos políticos (deputados e vereadores do PT, PCdoB, PDT), sindicalistas, líderes religiosos (como o arcebispo da região Metropolitana de Goiânia, D. Washington Cruz) e coordenadores do movimento nacional e regional dos sem terra.

A participação do cantor maranhense Zeca Baleiro acabou não acontecendo. Segundo Felinto Procópio, o Mineirinho, coordenador da comissão de Cultura do MST do Rio de Janeiro, o empresário do cantor ligou dizendo que já havia agendado show de Baleiro para ontem. O ato terminou por volta de 18 horas, quando os marchantes retornaram ao estádio, de onde saíram hoje pela manhã. Ainda segundo Mineirinho, as participações de artistas não estão descartadas e várias delas serão confirmadas ao longo da marcha. São cogitadas as presenças de Beth Carvalho, Lobão e Marcelo Yuka (ex-O Rappa), entre outros.

Agéncia Carta Maior