A implantação de um projeto norte-americano de liberalização dos mercados latino-americanos através da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) - tratado que, ao gosto dos EUA, deveria avançar além das regras acordadas na Organização Mundial do Comércio (OMC) -, pode não se concretizar a curto prazo, apesar dos esforços e dos recentes discursos neste sentido da secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice. Antes de qualquer retomada das negociações, acreditam organizações e movimentos sociais da América Latina, os governos envolvidos devem esperar o que resulta a reunião ministerial da OMC em Hong Kong, marcada para dezembro deste ano.

Esta avaliação e o fato de que o espectro político da região sofreu mudanças importantes com a eleição de governos mais progressistas - e menos afeitos a aceitar incondicionalmente as vontades dos EUA - nos últimos anos, levou o IV Encontro Hemisférico de Luta contra a Alca, evento que reuniu mais de 800 participantes da América Latina, EUA e Canadá, de 27 a 30 de abril em Havana, Cuba, a decidir por uma ampliação do foco de ação do movimento contra a Alca. Sem deixar de lado este projeto, os movimentos sociais decidiam fortalecer a resistência contra os Tratados de Livre Comércio (TLCs) Andino e Centro-Americano (Cafta), o projeto de acordo com a União Européia e as negociações preparatórias para a Ministerial da OMC, redefinindo o mote do movimento como “luta contra a Alca, o livre comércio e pela integração dos povos”.

TLCs e OMC

Para a rede intercontinental de organizações e movimentos sociais Aliança Social Continental (ASC), os dois principais TLCs - Andino, entre EUA, Peru, Equador, Colômbia e Bolívia, e Cafta, entre EUA, Honduras, Guatemala, República Dominicana, El Salvador, Costa Rica e Nicarágua - vêm sendo construídos, grosso modo, como um prelúdio liberalizante dos mercados latino-americanos, visando aplainar o terreno para a retomada da Alca.

Enquanto o TLC Andino enfrenta uma série de dificuldades em função dos protestos populares e da recente derrubada dos presidentes boliviano e equatoriano, o Cafta já foi negociado e ratificado por parte dos países, faltando apenas o aval final da Costa Rica, da Nicarágua e curiosamente dos EUA, onde a parcela democrata do Congresso vem afirmando uma forte oposição ao tratado.

É nestes pontos fracos que os movimentos deverão concentrar suas ações, explica o secretário executivo da ASC, Gonzalo Berron. Para isso, segundo ele, a ASC conta não apenas com um número crescente de organizações sociais na América Latina, como também com a participação ativa de organizações norte-americanas. O objetivo a partir de agora, explica Berron, é investir em todas as formas de pressão, sejam mobilizações de massa, sejam lobbies políticos.

“A ASC, enquanto rede, não deve sentar com governos para negociar. Pretendemos investir na organização da III Cumbre dos Povos, que acontecerá em Mar del Plata, Argentina, de 1 a 5 de novembro, paralelamente à IV Cúpula das Américas (evento da Organização dos Estados Americanos, que reúne 34 países e debate as principais questões políticas da região). Por outro lado, várias das organizações ligadas à ASC poderão dialogar com representantes governamentais ou parlamentares, expor as posições dos movimentos. Toda forma de pressão é importante”, explica Berron.

Neste sentido, os movimentos sociais decidiram fortalecer também uma intervenção no processo de negociações que devem fechar, até fim de julho, as propostas dos vários governos e dos distintos setores (serviços, agricultura, bens industriais e não agrícolas), além de regras de disciplinas, para a Ministerial da OMC. A principal preocupação dos movimentos, segundo a coordenadora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Iara Pietricovsky, é que os EUA estão forçando critérios adotados na Alca para dentro da OMC, que ainda preserva um mínimo de equilíbrio entre interesses de países ricos e pobres.

“Os EUA continuam tentando incluir na OMC o debate sobre os chamados novos temas (investimentos, compras governamentais, políticas de concorrência) e a Trips Plus (requisitos de proteção dos direitos de propriedade intelectual, que habitualmente se estabelecem através de convênios bilaterais, e que são mais rigorosos do que os TRIPS exigidos pela OMC), por exemplo, além de pressionarem pela alterações nas regras de disciplina, que definem a operação de mudanças nas Constituições nacionais e nas relações entre os países. Se conseguirem mudar na OMC a regra que exige consenso para a adoção de medidas pelo órgão, fazendo valer o voto majoritário, por exemplo, poderiam aplicar o mesmo princípio em relação à Alca e neutralizar a Venezuela. Nas regras atuais, sem a Venezuela, que se opões frontalmente à Alca, ela não sai”, explica Iara.

Apesar de reconhecer que a postura brasileira vem sendo bastante firme no sentido de recusar os avanços abusivos norte-americanos, as organizações sociais estão desenvolvendo uma série de atividades de formação interna e diálogos com setores do governo para debater a posição e as ofertas do país na OMC. Após um primeiro seminário sobre serviços (Gats) e produtos não agrícolas (Nama) em São Paulo, a Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip) se encontrou em Brasília com representantes do Itamaraty (entre eles o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães) e está preparando um seminário sobre OMC e agricultura no Congresso, para o qual pretende chamar parlamentares e pessoas-chave do processo de negociação na OMC.

“O governo está receptivo para o diálogo com as organizações da sociedade civil, principalmente através da Secretaria Geral da Presidência. A Rebrip hoje é reconhecida oficialmente como representante da sociedade civil nestes diálogos, tanto que dois membros estarão acompanhando, por dois meses, todo o processo de negociações da OMC em Genebra. Acreditamos que o diálogo com o Ministério das Relações Exteriores terá de ser coerente com esta posição”, afirma a coordenadora do Inesc.

A proposta da Alba

Outra questão discutida em Havana foram os dois principais projetos de integração da América Latina propostos por governos, a dizer o projeto brasileiro do presidente Lula, que quer constituir uma nova articulação do Sul enquanto força comercial para fortalecer a região nas negociações com EUA e União Européia, e o de seu colega venezuelano, Hugo Chávez, que aproveitou a sua estadia em Cuba para apresentar a proposta da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) aos participantes do Encontro Hemisférico.

Particularmente a Alba, lançada oficialmente por Chávez e Fidel no encontro dos governantes da última semana, foi tema de acalorados debates entre os movimentos, que acabaram por decidir por seu reconhecimento - mas não apoio - formal. A proposta chavista, que pretende uma “integração social, cultural, política e economia da América Latina”, apesar de não citar a fonte, se baseou em muito no documento "Alternativas para as Américas", elaborado pela ASC como proposta de “alternativa ao modelo de integração dominante”, o que a torna especialmente atrativa na opinião de muitos ativistas.

Por outro lado, ponderou-se, a necessidade de que os movimentos mantenham uma autonomia em relação aos governos e não se deixem instrumentalizar levou o Encontro Hemisférico a optar por um aprofundamento do debate no encontro da III Cumbre dos Povos na Argentina, ao mesmo tempo em que se reforçou a decisão de manter o documento original da ASC como parâmetro das lutas políticas na região.

“A Alba ainda não existe enquanto projeto formal, finalizado. Em sua fala aos movimentos, o presidente Chávez explanou os acordos entre Cuba e Venezuela, mas o projeto continua sendo mais uma definição política de integração, um marco geral. A decisão dos movimentos foi manter aberta uma porta para a Alba, mas com a manutenção total da autonomia”, concluiu.