Depois de cinco edições, nas quais reuniu por quatro vezes em Porto Alegre e por uma vez em Mumbai, na Índia, um número recorde de militantes e organizações sociais de todo o mundo, o Fórum Social Mundial (FSM) enfrenta, em sua sexta edição, o desafio inédito de acontecer simultaneamente em três continentes: nas Américas, em Caracas, Venezuela; na Ásia, em Karachi, Paquistão; e na África, em Bamako, Mali. A opção pelo “policentrismo”, que deve facilitar a participação dos atores sociais de cada região no processo FSM, também triplicou a demanda organizativa. E neste aspecto, inevitavelmente quem saiu na frente se fortaleceu mais. Das cerca de 600 atividades já inscritas, mais de 400 serão em Caracas, pouco mais de 70 em Karachi e 55 em Bamako. Portanto, Caracas, a primeira indicada pelos movimentos da região ainda em janeiro deste ano, sem dúvida será o coração do Fórum do ano que vem.

Assim, não há como escapar de um viés um tanto quanto latino-americano do evento em Caracas, o que fica claro na própria estruturação dos eixos de discussão. Por outro lado, o aspecto global do Fórum, afirma o comunicador Julio Fermín, membro do grupo facilitador da comissão organizadora venezuelana do FSM, deve ser o grande desafio deste encontro. Depois da fase do “se conhecer”, da apresentação de propostas, da construção de estratégias de implementação de alternativas, da busca de maior inclusão de movimentos de base e do debate sobre a dicotomia FSM enquanto espaço ou ator político, chegou a hora de avaliar resultados, afirma Fermín. O que se conquistou nestes seis anos de FSM? Quais os avanços? Quais as dificuldades? Quais os rumos futuros? Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida por Fermín à Carta Maior.

- Poderia falar um pouco da proposta de construção política do FSM em 2006, a partir do evento em Caracas?

– Desta vez, como o FSM será policêntrico, cada local definiu eixos temáticos diferentes para o evento, de acordo com as suas realidades regionais. Em Caracas serão seis. O primeiro, “Poder, Política e luta pela Emancipação Social”, tem uma relação estreita com o processo atual na América do Sul, onde está sendo muito difícil articular a relação entre governos progressistas, partidos e movimentos populares. Será o espaço para debater o problema da autocensura de muitos movimentos frente aos governos progressistas, governos que são alérgicos às críticas que se apresentam desde os movimentos sociais, e os partidos que estão aí no meio, tentando articular as relações entre governos e o povo. Esse é um tema muito interessante que faz desse um dos eixos mais importantes, justamente porque o debate existe no Uruguai, no Brasil, na Venezuela, possivelmente na Bolívia, na Argentina. Esperamos que se explore bem essa questão, porque é uma nova situação que vivemos na América Latina, e muito sensível.

Além disso, esse eixo trata também dos outros socialismos possíveis. Hoje se reatualizou o debate sobre o socialismo, que não é o mesmo do século passado, mas sim um socialismo do século XXI. É um debate aberto, é uma busca. Foi algo que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, lançou, e que tem suscitado muitos debates no país. No momento se avança em uma quantidade de coisas que passam pela idéia da Alba (Alternativa Bolivariana das Américas, projeto de integração regional elaborada por Chávez como alternativa à Alca), por uma nova forma de entender as relações de intercâmbio e integração dos países. Como o conceito de complementaridade na economia, no lugar da competitividade. No caso especial do socialismo, o desafio é buscar algo novo, que respeite o mercado, a propriedade privada, mas onde não predomine o mercado, e que o Estado possa incidir como elemento forte da economia. Mas é um debate aberto, não há nenhuma receita ainda a ser seguida.

- Nem a Alba é uma receita, neste sentido?

- Nem a Alba tampouco, porque a Alba é um tema que está em processo de experimentação; por exemplo no que faz a Venezuela com Cuba, Argentina, Brasil e Uruguai; no sentido de não mercantilizar o intercâmbio, mas se compensar. Por exemplo, se o Brasil vai construir barcos, esse é um processo que se compensa com a venda de combustível, é como uma troca em escala de comércio internacional. Mas isso é apenas uma parte, porque tem a questão cultural, de apoio no que tem avançado um país ou outro em educação, saúde etc. No caso da Venezuela com Cuba, há um intercâmbio importante sobre saúde e educação em troca de petróleo, de investimentos da Venezuela na Ilha; ou seja, há uma complementaridade interessante. Mas esse processo está em desenvolvimento.

- Mas também é um processo que está se dando apenas em escala governamental?

- Só entre os governos.

- E seria possível que fosse construído também entre os povos?

- Aí entramos nos desequilíbrios pelas assimetrias que podem haver também entre os níveis de organização dos diferentes povos. Aí temos que ver o tecido social, como está buscando suas alternativas. Por exemplo, como é economia solidária aqui, na Venezuela, na Argentina, são coisas que variam muito.

- E os outros eixos?

- O segundo eixo trata do tema da resistência, da militarização, da Alca, da OMC, das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) etc. Quer dizer, agora teremos a reunião de Hong Kong, da Rodada de Doha da OMC, em dezembro. Então a questão é como se pode articular as resistências e as campanhas frente a isso que vem por aí. O terceiro eixo trata do problema do modelo depredador, deste modelo civilizatório, em que entra o debate sobre biodiversidade, água, propriedade intelectual etc. O eixo quatro fala da diversidade cultural, da pluriculturalidade, dos povos originários ou tradicionais etc. Mas não se quer que os temas indígena e de gênero, por exemplo, sejam algo à parte. Queremos que sejam transversais, assim como o tema dos jovens ou do patriarcado. O eixo cinco fala da questão do trabalho e todas as novas forma de produção, a economia solidária, as migrações, a exploração etc. E o tema seis fala de educação, comunicação e cultura, ou seja, o tema das hegemonias e contra-hegemonias culturais, a democratização da comunicação e o diálogo e intercâmbio de saberes.

- Quanto ao aspecto macropolítico do FSM, como processo, qual, na sua opinião, será o debate central desta sexta edição, depois que se discutiu, nas anteriores, as alternativas contra-hegemônicas, formas de implementação e inclusão dos atores sociais no processo?

- Acredito que em Caracas se vá buscar uma espécie de ponto de avanço e de avaliação do FSM não somente das plataformas, das campanhas e das lutas que se vêm desenvolvendo. Eu acredito que o FSM 2006 será um evento que vai analisar criticamente as propostas encaminhadas até agora, inclusive com uma forte auto-crítica de que há uma baixa no processo de articulação da luta global. Parece que o Fórum serviu para fortalecer a cada um dos movimentos participantes, mas não fortaleceu uma luta mais global. Depois dos protestos mundiais contra a invasão do Iraque em 2004, não houve mais nenhuma ação global simultânea e articulada. Isso por um lado. Por outro, acredito que o FSM vai avaliar criticamente as relações movimento-governos-partidos. Por exemplo, se analisamos duas propostas claras na América Latina, que são a Alba e a Carta Social das Américas (ou Alternativa das Américas, proposta pela Aliança Social Continental). A Carta Social eram um projeto que juntou movimentos sociais e ONGs, e o que quero dizer é que havia uma proposta de alternativa para as Américas clara. Mas o que acontece que estas campanhas não conseguem fixar-se? E quando as assume um governo, que toma estas propostas e cria a Alba, por exemplo, o que acontece?

Há uma dificuldade de articulação entre os povos e os governos progressistas para criar instrumentos de mudanças e implementar coisas com esses instrumentos, que seriam um forte contrapeso ao modelo neoliberal que está se implementando na região. Mas esse é o velho problema da relação entre movimentos, partidos e governos. Podemos todos, movimentos e governos, juntos implementar a Carta Social das Américas ou a Alba? Como avançar de maneira mais concreta em articulações e ser uma força mais potente?

- Mas, na relação movimentos-governos, não podemos esquecer que dificilmente, mesmo frente aos governos mais progressistas, há total convergência. Tomemos, por exemplo, o modelo de desenvolvimento adotado pela maioria dos governos, que aposta em macroprojetos, no modelo desenvolvimentista, que é rechaçados por grande parte das populações diretamente atingidas em seu bioma, em sua realidade sócio-cultural

- Esse tipo de debate é o que se deve fazer em Caracas. No primeiro FSM, a conjuntura era totalmente diferente do ponto de vista dos governos no poder. Hoje, com uma nova conjuntura político-partidária no poder, o que temos? O mesmo desenvolvimentismo, só que com outras cores? Com outra fórmula? Este é o debate que temos que fazer.

- Outro aspecto, agora interno, que sempre suscitou debates no FSM, é a relação entre os movimentos sociais e as grandes ONGs, que também nem sempre comungaram nos mesmos projetos políticos. Como você avalia esta relação hoje?

- No caso mais global, acho que o FSM serviu para o relançamento de muitas forças. Muitos movimentos aproveitaram o FSM para crescer, e muitas ONGs para ressurgir, se legitimar, e agora tem que se posicionar, qual o seu lado. Creio que isso foi importante para recuperar esse setor na luta contra o neoliberalismo, porque muitos estavam por aí no meio. Foi um ganho para os movimentos e para a luta, mas isso terá que se definir melhor.

- Quando foi decidido que um dos encontros do FSM 2006 seria na Venezuela, idéia defendida pela grande maioria dos movimentos latino-americanos e por inúmeros intelectuais e acadêmicos ligados ao FSM, houveram alguns ruídos políticos, advindos principalmente da preocupação de que o Fórum pudesse ser instrumentalizado pelo governo de Hugo Chávez. Isso foi completamente superado?

- Bom, em uma reunião que tivemos em Havana, Cuba, no início do ano, o presidente Chávez disse que, se quisermos, ele sai da Venezuela nesses dias. Mas acredito que a maior prova de que não está havendo influência direta do governo na organização ou no conteúdo político do FSM é que a organização esta sendo toda autogestionada pelas organizações sociais venezuelanas. O governo tem muitas outras preocupações, outras coisas que fazer. Temos o mesmo apoio que tivemos no Rio Grande do Sul dos governos federal, estadual e municipal. Mas o fato é que a maior ajuda está vindo da prefeitura de Caracas, em forma de apoio logístico, como assegurar os locais das atividades, de repente ajudar com impressão de materiais, essas coisas.

Se bem que, quando se elegeu Porto Alegre para o primeiro FSM, era porque a conjuntura política local tinha aspectos muito interessantes em relação ao que se buscava como possibilidades de outro mundo. Assim, é bom deixar claro algumas coisas: não é à toa que se escolheu a Venezuela, de alguma maneira é um ato de solidariedade com o processo que ocorre lá, com sua defesa e fortalecimento. Mas para nós, o processo de organizar o FSM enquanto sociedade civil, sem ajuda do governo, está sendo muito importante, já que muitos outros movimentos de solidariedade internacional, os círculos bolivarianos, foram organizados por ele. Acho que esse é um novo marco para uma nova pauta para os movimentos na Venezuela, a de outo-organização.

- Para finalizar, como se dará o intercâmbio entre os três eventos? O Fórum de Mali, aliás, está marcado para 19 a 24 de janeiro, e os outros de 24 a 28.

- Bom, na verdade estamos com alguns problemas. Há informações ainda não confirmadas que o Fórum de Karachi, no Paquistão, poderá ser postergado por conta da catástrofe do terremoto que ocorreu no país no mês passado. Então pode ser que a idéia da simultaneidade do Fórum Social Mundial Policêntrico não ocorra como planejado. Não o caráter policêntrico, mas a simultaneidade. Era um sonho que fosse um evento de impacto mundial, que houvesse quiçá teleconferências via satélite para unificar os debates, coisas assim, mas acho que isso fica para outro momento. Como o Fórum de Mali será uma semana antes, tínhamos pensado em fazer um grande evento juntando o último dia do Fórum de Mali com o início dos fóruns da Venezuela e do Paquistão. Mas isso se definirá na semana que vem, quando ocorrerá uma reunião do Conselho Internacional do FSM em Karachi. Aí será definido o que faremos. Poderá ser também uma grande coletiva de imprensa simultânea, que junte todos no dia 24 de janeiro.

Carta Maior