Na reunião que tivemos com Lula, como Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, entre as tantas interpelações duras feitas a ele, em uma delas uma trabalhadora rural chilena, da Via Campesina, reclamou que não havia entendido nada do que Lula tinha dito, agora que ele é presidente, mas que quando ele era líder sindical, ela o entendia. Lula respondeu que “ele também se entendia melhor antes”, quando as coisas eram mais simples, os interlocutores eram menos, etc.

Várias análises, depois de dois anos de governo, tentam entender que é esse Lula presidente da república - que confessa sinceramente que “se entendia melhor antes”? De que forma suas origens de classe contam para entender seu comportamento e seu governo? Que selo de classe têm estes? Como Lula pensa sua relação com sua classe de origem? Como Lula pensa sua inserção social atual?

Está claro que não apenas o tempo mediado desde que ele deixou de ser líder sindical classista, como as funções que passou a desempenhar posteriormente - dirigente partidário, parlamentar, candidato à presidência, dirigente de um Instituto de formulação de projetos - redefiniram seu ser social. Este tem que ser caracterizado a partir da natureza do projeto político que ele encarna. Suas origens podem - ou não - ter ficado presentes na sua sensibilidade para o manejo dessas políticas, para a elaboração do seu discurso, para o sentido que pretende impor à sua ação como presidente.

Os dramáticos acontecimentos ocorridos no lapso de uma semana - o assassinato da freira norte-americana Dorothy Stang e a eleição do deputado pernambucano Severino Cavalcante para a presidência da Câmara - oferecem dois espelhos distintos para que Lula se olhe. Nenhum deles coincide precisamente com ele hoje, mas nenhum deles lhe é absolutamente alheio. Olhar-se na figura de uma e de outro, pode ser útil para que Lula possa pensar sua natureza social hoje.

Em Dorothy Stang, Lula poderá encontrar a cara dos militantes dos movimentos sociais, seus companheiros de origem, aqueles que resistiram junto com ele à ditadura, os povos da floresta, Chico Mendes, os que se mobilizaram e se mobilizam pelos direitos das maiorias. Poderá ver nela como não importa a nacionalidade, nem o sexo, nem a idade, para que seja possível a dedicação de vida inteira às causas dos povos. Lula poderá se recordar de tantos outros companheiros com os quais ele compartilhou o caminho e que hoje se perguntam a quem beneficia o seu governo, por que setores sociais seu governo fez uma opção preferencial.

Se olhar para seu conterrâneo, Severino Cavalcanti, Lula poderá ver como a origem pobre não é garantia nenhuma do tipo de ação política que cada um desenvolve. Verá como alguém originário de setores pobres da população nordestina, fez sua carreira política na Arena, no PDS, no PP, tendo tomado as posições mais antipopulares e antidemocráticas ao longo de sua carreira política.

Em nenhum dos dois Lula poderá se reconhecer plenamente, mas os dois têm aspectos que podem servir para Lula se entender melhor e fazer opções claras - até porque, como lhe foi dito na mesma reunião do Fórum Social Mundial, “não se pode servir a dois senhores” e, neste caso, até mesmo pelas espantosas declarações de Severino sobre o trabalho escravo, os dois personagens estão em campos contraditórios: ou se está com Dorothy ou com Severino.

Dois anos depois do seu inicio de governo, Dorothy foi assassinada e Severino foi guindado à presidência da Câmara de Deputados. Os povos da floresta foram dessangrados, enquanto os “300 picaretas” tomaram de assalto a presidência da instância que deveria servir para representar o povo brasileiro. Que cada um escolha o seu campo e que Lula possa escolher a imagem com que quer ser inserido na história brasileira.