Co-produtor de um filme sobre a Escola das Américas, ativista dos direitos humanos e cidadão dos EUA, Andrés Conteris analisa, em entrevista à Agência Carta Maior, a situação em seu país, os planos do governo Bush e suas conexões com a história da América Latina.
Marco Aurélio Weissheimer
Andrés Thomas Conteris, 43 anos, nasceu nos Estados Unidos mas tem profundas ligações com a América Latina. O pai é norte-americano e a mãe, uruguaia. Viveu cinco anos na Bolívia e outros cinco em Honduras, onde trabalhou como ativista da organização não-governamental “Noviolencia Internacional”, sediada nos EUA. Atualmente, mora em Washington, mas passa a maior parte do tempo entre aeroportos do continente, trabalhando em defesa da construção de uma rede de resistência ao militarismo imperial que tomou conta do governo de seu país, especialmente a partir da administração Bush. Co-produtor de um documentário sobre a Escola das Américas, instituição do governo norte-americano que se tornou conhecida por treinar militares, torturadores e futuros ditadores latino-americanos, Conteris está alarmado com o que ocorre em seu país.
“Os EUA, com Bush, caminham para se tornar uma ditadura”, diz ele, salientando que não se trata, absolutamente, de um exagero retórico. Conteris esteve em Porto Alegre, participando da quinta edição do Fórum Social Mundial, como já fizera em anos anteriores. Em entrevista à Agência Carta Maior ele fala sobre o difícil trabalho que milhares de ativistas e dezenas de organizações dos EUA vêm realizando para denunciar as políticas imperiais e belicistas do governo Bush. Seu relato impressiona pela riqueza de suas fontes de informação e pelo pessimismo quanto ao futuro imediato do seu país. “Estamos caminhando para uma situação muito mais difícil que a atual”, prevê. Diretor do Programa para as Américas da “Noviolencia Internacional”, Conteris vê com esperança as mudanças políticas na América Latina, o que, segundo ele, pode vir a constituir uma força política capaz de influenciar o rumo da política em seu próprio país.
Como você começou a se envolver nesta luta contra a violência internacional e, mais particularmente, contra o militarismo que tomou conta dos EUA?
Eu estudei e me graduei em Estudos de Paz e Justiça Global, no Earlham College, em Richmond, Indiana. Por uma incrível coincidência, o chefe de polícia de Richmond era Daniel Mitrioni, um nome conhecido na história recente da América Latina. Após ser chefe de polícia em Richmond, Mitrioni foi treinado em Washington pelo FBI e veio para o Brasil, no começo dos anos 1960, em uma missão que ele próprio declarou cumprida em 1964, ano do golpe militar que derrubou o governo João Goulart. Ele era um especialista em técnicas de interrogação e tortura. Após cumprir sua missão no Brasil, ele vai para o Uruguai, para onde leva as últimas técnicas de interrogatório e tortura. Mitrioni acaba sendo capturado pelos tupamaros que exigem a libertação de todos os presos políticos para soltá-lo. O governo uruguaio não atende a essa exigência e ele é executado. A morte de Mitrioni é tema do início do filme “Estado de Sítio”, de Costa-Gavras.
E qual é a tua relação com essa história?
Pois bem, eu cheguei a Earlham College e descubro essa conexão incrível. Meu tio, que se chama Hiber Conteris, era militante dos tupamaros. Minha tia, Susana Iglesias, também militou com os tupamaros. Ela passou cerca de dois anos e meio presa, foi torturada brutalmente. Meu tio ficou mais de oito anos presos no Uruguai. Eu tinha cerca de 15 anos nesta época. A partir daí, comecei a estudar o que estava acontecendo no Uruguai e o papel dos EUA. Foi quando descobri que o governo dos EUA estava apoiando a ditadura e todos os seus crimes. Quando entrei em Earlham, descobri essa conexão com Daniel Mitrioni. E então, no início dos anos 1980, armei uma campanha internacional de pressão em defesa dos direitos humanos e da libertação do meu tio. Em 1983, mais de 26 senadores dos EUA assinaram uma carta em defesa da libertação de meu tio no Uruguai. Isso foi incrível, pois a maioria dos senadores nem sabia onde ficava o Uruguai.
Enfim, conseguimos armar uma campanha internacional fortíssima e, finalmente, a ditadura caiu em 1985. Ele sai da prisão de Libertad - incrível este nome, não?- e, alguns meses depois, seu único filho, meu primo, Marcos, foi assassinado na Nicarágua. Meu primo militava com os sandinistas e caiu em uma emboscada em Chantales, no interior da Nicarágua. Ele tinha exatamente seis meses a mais do que eu. Me dei conta, então, que Marcos havia decidido entregar sua vida a essa causa e decidi fazer o mesmo, militando como pudesse para ajudar a mudar a política do Império em relação à América Latina. Com o fim da ditadura no Uruguai, passei a trabalhar mais na região da América Central, que vivia a guerra de Reagan contra os sandinistas na Nicarágua e contra a Frente Farabundo Marti, em El Salvador.
E aí começou seu interesse pela Escola das Américas?
Exatamente. Conheci o trabalho do fundador do movimento pelo fechamento da Escola das Américas, padre Roy Bourgeois, um grande amigo. O padre Roy, uma pessoa incrível, trabalhou na Bolívia, onde foi preso e torturado. Eu e minha família também passamos cinco anos na Bolívia, quando eu era criança. Meu pai trabalhou lá como pastor metodista. Após a sua prisão, padre Roy decidiu organizar um movimento contra a Escola das Américas, mais especificamente por ocasião do massacre de seis jesuítas e seus dois ajudantes em El Salvador. No primeiro aniversário da morte dos jesuítas, ele foi até a sede da Escola das Américas, em Fort Benning, no estado da Geórgia, para protestar. Foi aí que iniciou um forte movimento contra a Escola das Américas.
Um pouco antes disso, em 1987, ele me pediu para participar de um ato de protesto na embaixada dos EUA em Honduras, país que serviu de quartel-general para a guerra contra a Nicarágua, contra El Salvador, que articulou o golpe de Estado contra Arbens na Guatemala, em 1954, entre outras ações. Em todo este período, Honduras foi um país ocupado militarmente pelos EUA. Ainda hoje, o grosso da presença militar norte-americana na América Central está concentrada neste país. Fomos a Tegucigalpa e protestamos em frente da embaixada. Bloqueamos a entrada principal, jogamos sangue humano nas paredes e acusamos formalmente Reagan, Bush e outros fascistas de estarem fazendo uma guerra contra o povo centro-americano.
Vários companheiros que participaram deste protesto foram deportados. A partir daí estabeleci uma conexão com a América Central muito mais forte. Vivi em Honduras durante cinco anos, período em que pude descobrir como as políticas do governo dos EUA afetam diretamente a vida do povo. Meu trabalho sempre foi de luta militante, não violenta, contra o Império.
Qual foi o papel da Escola das Américas neste período?
A Escola das Américas é um símbolo deste período. Simboliza a repressão, o treinamento de torturadores e ditadores. Alguns dos piores violadores dos direitos humanos na América Latina passaram pela Escola das Américas. Em novembro de 2004, o movimento contra essa escola já somava 16 mil pessoas e continuamos crescendo. O objetivo desse movimento não é só fechar a escola, mas mudar a política dos EUA para a América Latina. Para dar uma resposta a esse movimento e também para despistar, a Escola das Américas mudou de nome e hoje é chamada de Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação de Segurança.
Oficialmente, a Escola das Américas foi fechada em dezembro de 2000. No dia 17 de janeiro de 2001, surgiu o instituto que segue desempenhando o mesmo papel da escola. Um dos objetivos do nosso documentário é mostrar como essa política funciona (Lançado no Brasil durante o FSM 2005, esse documentário pode ser encontrado junto ao Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - Ibase - e à Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais - Abong).
É o único documentário que ouve os dois lados, os que são a favor da escola e os que são contra. Ele mostra, por exemplo, as posições do general John Lemoyne, um criminoso de guerra que participou de massacres contra o povo iraquiano, como mostrou o jornalista Seymour Hersh, na revista New Yorker. Quando ainda era coronel, Lemoyne participou de dois massacres no Iraque, em 1991. Depois, foi promovido a general e nomeado diretor do Fort Benning, sede da Escola das Américas. Mais tarde, foi nomeado chefe do departamento de pessoal de todo o Exército dos EUA, indo para o Pentágono. Nesta condição, ele é responsável pela indicação dos oficiais que vão para o Iraque. Então, mais uma vez, como ocorreu em 1991, ele está envolvido na violação dos direitos humanos no Iraque.
Esse general defende suas posições no documentário?
Sim. E há uma outra conexão muito forte com o atual embaixador do EUA no Iraque, John Dimitri Negroponte. Nos anos 1960, Negroponte esteve em Saigon, no Vietnã, e fez parte da equipe do então secretário de Estado, Henry Kissinger, que foi a Paris negociar a paz com o Vietnã do Norte. Kissinger estava chegando a um acordo e Negroponte criticou-o dizendo como era possível os EUA estarem fazendo tantas concessões aos comunistas. Incrível, este homem estava criticando Kissinger pela direita. Kissinger, conhecido como um assassino de milhões de pessoas com as políticas que ajudou a implementar no mundo inteiro. Talvez seja o homem responsável por mais mortes em toda a história da humanidade. E Negroponte criticou-o, exigindo que fosse mais duro. Alguns anos depois, Negroponte foi nomeado embaixador em Honduras, onde, sob o governo Reagan, aumentou o orçamento militar de 4 milhões de dólares anuais para algo em torno de 77 milhões de dólares por ano. Ele participou diretamente da organização de esquadrões da morte em Honduras para reprimir os descontentes com o regime.
E, obviamente, trabalhou ativamente na organização dos contras na Nicarágua, violando leis expressas dos próprios EUA e se envolvendo no escândalo Irã-contras. Mais tarde, foi embaixador no México quando se firmou o tratado de livre comércio da América do Norte (Nafta) e, depois, foi nomeado embaixador dos EUA nas Nações Unidas. Há um fato incrível envolvendo essa nomeação. A audiência no Senado dos EUA para confirmar sua indicação estava marcada para 12 de setembro de 2001. Veio o ataque de 11 de setembro e a audiência foi adiada para um dia depois, 13 de setembro.
Eu participei dessa audiência, em Washington. Negroponte disse algumas coisas tão terríveis que eu não agüentei, me levantei e disse que o povo de Honduras considerava-o um terrorista de Estado. Era 13 de setembro, havia policiais por todo o lado. Eles me tiraram da sala mas não me prenderam para evitar uma publicidade maior. Finalmente, em abril de 2004, ele foi nomeado embaixador dos EUA no Iraque. Negroponte está levando para o Iraque as estratégias que os EUA utilizaram na América Central, o que inclui a formação de esquadrões da morte e a prática de tortura, entre outras coisas. Há três ou quatro semanas, a revista Newsweek publicou uma matéria intitulada “A opção El Salvador”, que trata exatamente disso, do tema dos esquadrões da morte no Iraque.
Como você avalia a atual situação dos EUA no Iraque?
O Império está perdendo a guerra no Iraque. Eles estão muito desesperados. O que Negroponte conhece muito bem é que não basta atacar a resistência, mas também as bases de apoio da resistência. Essas bases são formadas por civis, famílias de iraquianos que não aceitam a invasão militar dos EUA. Como se faz isso? Os salvadorenhos, hondurenhos e outros povos latino-americanos sabem muito bem como se faz: com esquadrões da morte, torturas e assassinatos. Essa situação é muito preocupante, pois se o Império tem a consciência de que está perdendo essa guerra pode se tornar muito mais violento e perigoso. A CIA já produziu informes dizendo que há mais terrorismo hoje no Iraque do que havia antes da derrubada de Saddam. Eles pensavam que havia cerca de 20 mil lutadores e hoje sabem que há mais de 200 mil.
O que me preocupa é o desespero do Império frente a este quadro. Em novembro de 2000, esses tipos (Rumsfeld, Chenney, Wolfowitz e outros) escreveram um documento intitulado “Project for the New American Century” (Projeto para um Novo Século Americano), onde está exposta toda a estratégia de múltiplas guerras preventivas para garantir a hegemonia do Império. Entre outras coisas, eles dizem que isso não será nada fácil a menos que ocorra um “novo Pearl Harbor” nos EUA (essa expressão aparece na página 51 do referido documento disponível na internet no endereço www.newamericancentury.org).
Está escrito, é público. Um ano depois, vem o 11 de setembro. Eles ganharam o “novo Pearl Harbor” que desejavam e declaram guerra total ao terrorismo. Mas estão perdendo essa guerra, militar e economicamente. A situação da dívida pública e do déficit comercial dos EUA é absolutamente insustentável. Agora, já fazem planos para atacar o Irã. Creio que eles não poderão prosseguir nesta política sem um novo 11 de setembro, sem um novo Pearl Harbor.
Você está morando em Washington. Como está o ambiente dentro dos EUA?
Temos uma população hipnotizada pelo consumismo e pelo medo. A televisão domina a vida das pessoas que, em sua maioria, recebem informações da Fox News e da CNN, que são fontes diretamente ligadas ao núcleo do Império. Há seis grandes empresas que são donas dos principais meios de comunicação. A General Eletric, por exemplo, é dona da NBC e de Walt Disney. Hoje, grandes corporações internacionais controlam a imprensa do país. As notícias do Fórum Social Mundial não saem em lugar algum, é óbvio. Há uma censura incrível. Há meios alternativos, como o Democracy Now (www.democracynow.org), que fazem um trabalho de rádio e tv na internet muito importante, mas insuficiente para furar esse bloqueio. Nossa luta é interminável para enfrentar esse poder.
Temos muito o que aprender com o que aconteceu no Brasil, na Argentina e no Uruguai, onde a luta clandestina levou ao desenvolvimento de formas de resistência muito criativas. Vamos precisar disso. Creio que os EUA estão prestes a entrar em um período de ditadura total, com controle de informação e violação dos direitos humanos numa escala muito maior que a atual. Hoje, ainda temos alguns espaços de expressão, mas eles estão diminuindo cada vez mais. A crise econômica, política e ecológica só está piorando, o que, creio, vai nos levar a crises maiores e a uma maior repressão também.
Você não vê nenhuma possibilidade de mudança deste quadro?
Dentro do atual sistema eleitoral, não há nenhuma possibilidade de mudança. Os partidos Democrata e Republicano são, na verdade, um único partido, o partido capitalista do Império. Há tendências extremistas dentro dos dois partidos. Os extremistas democratas não têm capacidade de mudar esse quadro e, infelizmente, os extremistas republicanos estão no poder. Assim, não vejo qualquer possibilidade de mudança pela via eleitoral. Só pode haver algum tipo de mudança com um movimento similar ao que ocorreu na guerra do Vietnã, mas não vejo muita chance disso.
A estratégia das organizações que lutam pela paz é muito de curto prazo, enquanto a direita tem uma clara estratégia de longo prazo. Não estamos prontos para o que nos espera, que não é nada bom. Já temos campos de concentração em Guantánamo, a tortura já está legalizada e violamos as leis da Convenção de Genebra. O Pentágono enfrenta um sério problema de falta de soldados para lutar em diversas frentes e já começa a se falar em recrutamento forçado. Tudo isso parece literatura fantástica, mas já estamos vivendo essa situação, o que muita gente ainda não percebeu.
É um diagnóstico um tanto pessimista...
Há um dado muito positivo. É impressionante o que está acontecendo na América do Sul, especialmente na Venezuela, no Brasil, na Argentina e, agora, no Uruguai. Tenho esperança que a vitória de Tabaré Vázquez pode dar maior força para os governos Lula e Kirchner. Está em curso um novo bloco de poder político na região, que pode ser muito importante na luta contra o fascismo que está tomando conta da América do Norte. E ainda há Evo Morales, na Bolívia, que pode ser eleito presidente nos próximos anos. No entanto, se isso acontecer, creio que o Império não assistirá calado. Evo Morales é demais para eles. Seja como for, gostaria de sugerir aos meus compatriotas que estão pensando em deixar o país que, ao invés de ir para o Canadá, como alguns estão fazendo, venham para a América Latina que representa hoje um espaço de esperança e de resistência.
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