A festa começou ainda no final da noite de segunda-feira, a véspera da posse do novo presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, o primeiro governo de esquerda da história do país. E o país que já foi conhecido como a Suíça da América Latina, nos anos 50, começou a parar por volta da meia-noite. Parar com a meta de começar a reconstruir o país, tendo não a Suíça como referência, mas sim a América latina. Foi uma noite histórica para o povo uruguaio que saiu em massa para as ruas, cantando, lançando fogos de artifício, comemorando o ano novo que começava. E foi assim mesmo que as pessoas se saudavam nas ruas da capital: feliz ano novo.

O vermelho, o azul e o branco, as cores da Frente Ampla, pintaram a chegada deste ano novo, em um dia que começou levemente cinzento para terminar em uma festa popular multicolorida. Bandeiras do Uruguai, da Frente Ampla, dos partidos que compõem a frente (tupamaros, comunistas, socialistas, entre outros), de partidos de outros países (como o PT brasileiro), e de outras nações da América Latina (Venezuela, Argentina, Brasil, Cuba, México, Paraguai, Chile, entre outros), compuseram um mosaico latino-americano pelas ruas de Montevidéu.

Após a meia-noite, a avenida 18 de julho foi tomada por milhares de pessoas de todas as idades. Diferentes gerações de uruguaios se encontraram, manifestando a esperança de uma nova etapa na história do país. Esperança sobretudo no retorno de milhares de uruguaios que escolheram o caminho de um exílio mais ou menos voluntário. Na verdade, a estagnação econômica e a crise social empurraram muitas pessoas para o exterior. Um dia antes da posse, uma televisão uruguaia fez uma reportagem no aeroporto de Carrasco, registrando a chegada, para a posse de Tabaré, de uruguaios que moram no exterior. E muitos deles afirmaram a disposição de retornar de vez para o país para reconstruir a vida em sua pátria. O sentimento de pertencimento à nação ganhou novo impulso, dentro e fora do Uruguai, com a vitória da Frente Ampla.

“O velho companheiro Tabaré”

Por volta das 14h30min desta terça (1º), o presidente Tabaré Vázquez e o vice Rodolfo Nin Novoa prestaram o juramento de fidelidade à Constituição, na Assembléia Geral. Os novos mandatários do país foram chamados pelo senador José Pepe Mujica, que presidiu a Assembléia Geral por quinze dias. Quebrando o protocolo, Pepe Mujica dispensou a gravata e o cerimonial. Ex-guerrilheiro tupamaro, que ficou preso por doze anos durante a ditadura militar, Mujica convidou “o velho companheiro Tabaré” para o juramento e resumiu do seguinte modo o momento: “dou graças à vida por ter chegado aqui”. Ao fazer o juramento, o novo presidente prometeu “trabalhar incansavelmente pela felicidade do povo uruguaio”. A cerimônia de posse foi rápida, sem maiores cerimônias, e foi assistida por diversos líderes latino-americanos, entre eles os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, da Argentina, Néstor Kirchner, do Chile, Ricardo Lagos, da Venezuela, Hugo Chávez, e do Peru, Alejandro Toledo.

Em seu discurso de posse, Tabaré Vázquez apontou os princípios gerais que devem nortear as prioridades de seu governo: liberdade, solidariedade e igualdade. “Não cheguei aqui sozinho, mas sim com milhares de compatriotas que expressaram o desejo de um país melhor. E nós viemos de longe, trazendo conosco os princípios de solidariedade e justiça presentes no ideário de Artigas. Viemos de longe e queremos ir mais longe ainda”, resumiu. Dizendo-se consciente das dificuldades que vai enfrentar para construir um novo projeto de desenvolvimento sustentável para o país, o novo presidente garantiu que ficará para trás “o tempo dos governos iluminados e distantes do povo”.

Ao dizer isso, prometeu implementar um novo tipo de governo. “A história não tem fim e como ela se constrói também a partir de pequenas escolhas cotidianas, queremos construir uma história com a participação de todos os homens e mulheres deste país. Este será o governo de todos os uruguaios”, garantiu.

Iluminar as zonas sombrias da ditadura

Entre outros pontos, o novo líder uruguaio assumiu o compromisso de iluminar, com as leis existentes no país, as zonas sombrias que ainda existem no país na área dos direitos humanos, numa clara referência aos crimes cometidos durante a ditadura militar (1973-1985). Tabaré defendeu que a sociedade uruguaia precisa resolver esse problema com o seu próprio passado para recuperar a paz no coração de todos e tirar aprendizados para o futuro. “O horror de outras épocas nunca mais pode ocorrer”, disse o presidente, numa passagem bastante aplaudida pelos parlamentares.

Outro ponto alto do discurso presidencial foi a afirmação das linhas gerais da nova política externa do país, “uma política externa independente”, como disse Tabaré. Essa política, segundo ele, estará baseada em cinco princípios básicos:

 1) Adesão e respeito incondicional ao direito internacional, respeito à soberania dos Estados e aos princípios de não-intervenção e de autodeterminação dos povos. “Não toleraremos ingerências externas em nossos assuntos internos. Os problemas uruguaios serão resolvidos pelos próprios uruguaios”, garantiu.

 2) Rechaço a todo tipo de terrorismo, violência e discriminação.

 3) Compromisso com o Mercosul, considerado um projeto estratégico na agenda do Uruguai. “Queremos mais e melhor Mercosul, um Mercosul ampliado e fortalecido”, resumiu.

 4) Desenvolver relações com todas as nações sul-americanas, independentemente do Mercosul, sem exceção. Impulsionar as cúpulas sul-americanas e buscar uma maior aproximação com a União Européia e com outros blocos.

 5) Relação de mútuo respeito com os organismos multilaterais internacionais. Priorizar a Organização das Nações Unidas como instância última do direito internacional e trabalhar pelo fortalecimento dos programas de combate à fome no mundo e pelo cumprido das Metas do Milênio, estabelecidas pela ONU.

Um continente de exílio e saudade

Tabaré Vázquez fez uma homenagem especial aos milhares de uruguaios que vivem no exterior, lembrando que a história da América Latina é, entre outras coisas, uma história de exílios e saudades. Mas, lembrou, “a pátria peregrina é, sobretudo, pátria”. Desde 1996, cerca de 110 mil uruguaios deixaram o país, a maioria com idades entre 20 e 40 anos. Com 13,4% de sua população acima dos 65 anos (cerca de 430 mil pessoas), o Uruguai é hoje o país mais envelhecido da América Latina e Caribe. Um dos desafios do novo governo será, justamente, tentar atrair parte destes uruguaios de volta ao país. Outro, diretamente relacionado ao primeiro, é oferecer de novo a perspectiva de uma nação.

No final da tarde de terça, nos arredores da praça Artigas, onde milhares de pessoas comemoravam a posse, uma cena mostrou o tamanho da dificuldade que o novo governo uruguaio enfrentará. Adolescentes e jovens pediam dinheiro para pegar um ônibus, comprar um cigarro avulso ou algo para comer. Tabaré Vázquez e seus companheiros de governo não terão uma vida fácil, mas a julgar pela energia e entusiasmo demonstrados na ruas, eles conseguiram um bom ponto de partida. Um dia que mostrou, sobretudo, que a política ainda desperta muito entusiasmo na América Latina, um continente de exílio, de saudade e de peregrinos em busca de uma pátria. Ao menos neste 1° de março, os uruguaios reencontraram a sua.