O presidente da Argentina, Néstor Kirchner, comprou uma nova briga, desta vez com a empresa petrolífera anglo-holandesa Shell. O motivo: o reajuste de 4,2% que a empresa fez nos preços de seus produtos. Kirchner deixou os mercados de cabelo em pé ao convocar a população a boicotar a empresa. “Não comprem nem uma lata de óleo da empresa”, defendeu. O mundo veio abaixo no mercado financeiro e a Bolsa de Buenos Aires despencou na quinta-feira (dia 10). Mas a população Argentina parece ter gostado da briga e está manifestando apoio ao boicote.

Os movimentos piqueteros argentinos, que abrangem as camadas mais pobres da população, convocaram uma série de protestos contra a Shell. Eles pretendem promover bloqueios em frente aos postos da empresa no país, pedindo aos motoristas que comprem combustível em outro lugar. O principal objetivo do protesto é forçar a Shell a baixar os seus preços.

Kirchner foi duro em suas críticas a Shell, dizendo que a atitude da empresa conspira contra o desenvolvimento do país. “Não compremos nada, nem uma lata de óleo. Que se dêem conta de que nós, argentinos, não suportamos mais esse tipo de ação”, disse o presidente. A decisão da Shell não foi acompanhada pelas empresas Repsol-YPF (espanhola) e Petrobrás (brasileira), que já anunciaram que não mexerão nos preços de seus produtos. Nesta sexta-feira (dia 11), Kirchner voltou a criticar a Shell, qualificando-a como “uma das piores empresas do mundo”. “Queremos que venham muitos investimentos para a Argentina, mas que não venham os piores do mundo”, disse o presidente durante um discurso na Casa Rosada. Ele leu um artigo da revista Multinacional Monitor, dos Estados Unidos, onde a Shell é descrita como “uma das principais empresas poluidoras do mundo” e incluída em uma lista das dez piores empresas multinacionais do planeta.

Governo teme aumento da inflação

Tudo começou quando a Shell anunciou aumentos entre 2,6% e 4,2%. Com esses reajustes, a gasolina super (aditivada) passou a custar 0,65 centavos de dólar o litro, nos postos da empresa. O governo argentino protestou, temendo que o aumento de preço dos combustíveis provoque uma disparada da inflação. Em fevereiro, a inflação subiu 1% na comparação com janeiro. Somente nos dois primeiros meses deste ano, ela já acumula uma alta de 2,4%. Durante seu discurso na sede do governo argentino, Kirchner respondeu críticas de alguns jornalistas que consideraram a proposta de boicote um gesto extremo e carregado de populismo. “Se defender os bolsos dos argentinos é uma atitude extrema, terei que tomar todas as atitudes extremas que correspondam a isso”, afirmou o presidente. Apesar das críticas publicadas na imprensa, Kirchner parece ter ganho pontos junto à maioria da população que está se manifestando favoravelmente ao boicote.

Na manhã desta sexta, diversos cartazes e panfletos circulavam por Buenos Aires, apoiando a fala presidencial. “Aumentam os preços na Argentina para pagar os processos milionários que perdeu em todo o mundo por fraude contra os acionistas”, dizia um deles. Outro recomendava: “Não compre daqueles que sobrem os preços. Compre de outro. Defenda teu bolso e teu país”. Os proprietários de postos de combustíveis que vem produtos Shell manifestaram preocupação com as conseqüências do boicote e dos protestos dos piqueteros. Em entrevistas a canais de televisão argentinos, eles disseram que serão eles, e não a Shell, os principais prejudicados caso o boicote se alastre pelo país. O presidente da confederação que congrega os proprietários de postos, Raúl Castellanos, disse que, dos 900 postos do país que vendem produtos Shell, apenas 200 pertencem à empresa. “É uma luta de argentinos contra argentinos”, lamentou outro proprietário.

Direção da Shell: talvez uma nota no futuro

Contra essa posição, o secretário de Organização Nacional da Central de Trabalhadores Argentinos (CTA), Edgardo De Petri, descartou qualquer ato de violência contra os postos e seus empregados, dizendo que “violência é o aumento de preços, porque isso significa castigar a sociedade que vem se recuperando de uma grave crise econômica e social”. O que está em jogo, acrescentou De Petri, não é a briga do presidente com as empresas transnacionais, mas sim o compromisso do povo com os grandes temas nacionais. Uma opinião totalmente diferente foi expressa pelo jornal La Nacion que, em editorial, classificou a atitude de Kirchner como “intempestiva, inoportuna e desnecessária, no momento em que a Argentina tenta recuperar a confiança dos investidores”. “Esta natural tendência do chefe de Estado a exageros pode cair bem junto a uma parcela da população, mas também são perigosos sinais de um indevido intervencionismo estatal”, acrescentou o jornal.

Na Holanda, sede mundial da Shell, o único jornal a noticiar a proposta de boicote feita por Kirchner foi o Het Parool, que registrou rapidamente o ocorrido. Os demais diários holandeses não reproduziram as declarações de Kirchner. Na Argentina, a direção da Shell manteve até a tarde de sexta um absoluto silêncio diante das críticas do presidente. A única manifestação partiu da diretora de Serviços Institucionais da empresa que disse laconicamente: “Talvez se emita alguma nota no futuro”.

Nenhum representante da empresa quis comentar as acusações de Kirchner sobre o envolvimento da Shell com fraudes, abusos de preços, contaminação ambiental e mau trato contra trabalhadores. A empresa, com capital majoritariamente holandês, está presente na Argentina desde 1914. Sua atividade no país concentra-se no refino do petróleo, não participando na exploração de petróleo ou gás.