Ao final da cúpula, um jornalista perguntou a Lula: qual sua definição de terrorismo? A resposta falou em fome, unilateralismo e desrespeito ao direito internacional. Para alguns, uma resposta anti-americana e anti-Israel. O que há de preconceito e amnésia histórica neste reducionismo?

A “Declaração de Brasília”, documento contendo as conclusões da primeira reunião de cúpula América do Sul-Países Árabes, defendeu a importância do combate ao terrorismo em todas as suas formas, através do desenvolvimento de uma cooperação internacional ativa, liderada pela Organização das Nações Unidas, com apoio de outras organizações multilaterais.

O documento também propôs a realização de uma conferência internacional coordenada pela ONU para definir o crime de terrorismo. E reafirmou o repúdio a todas as formas de ocupação estrangeira, reconhecendo o direito de países e povos a resistir a ela, de acordo com os princípios do direito internacional.

Nada de novo, exatamente. Nada que já não esteja previsto em resoluções da ONU aprovadas pela imensa maioria das nações, inclusive aquelas que condenam a ocupação militar israelense de territórios palestinos. No entanto, setores da mídia brasileira e internacional tentaram reduzir o encontro a um “palanque anti-americano e de ataques a Israel”.

Esse reducionismo mal consegue esconder o preconceito e o racismo em relação ao povo árabe. Há algum tempo, nove entre dez filmes de Hollywood sobre terrorismo trazem árabes como protagonistas do mal.

A partir dos atentados de 11 de setembro, Osama Bin Laden virou o ícone mundial do terrorismo. A gigantesca e poderosa máquina de propaganda do governo dos EUA trabalha dia e noite para condenar “todas as formas de terrorismo” e para tentar associá-las ao povo árabe. Durante entrevista coletiva, ao final da cúpula, um jornalista da Agência Reuters perguntou ao presidente Lula qual era a sua definição de terrorismo.

A pergunta é curiosa pois sugere que o presidente brasileiro pudesse ter uma definição peculiar de terrorismo, capaz de gerar boas manchetes no noticiário internacional. No entanto, a resposta de Lula repetiu formulações aprovadas pela ONU e pela maior parte da comunidade internacional das nações.

Lula citou a pobreza, o unilateralismo, a má distribuição de renda e a desigualdade econômica entre as nações como fatores associados à proliferação do terror. É uma resposta que desagrada muita gente, que a consideram como uma espécie de justificativa de atos terroristas. Acima de tudo, é uma resposta que desagrada aos atuais ocupantes da Casa Branca que fizeram do unilateralismo, da força e do desrespeito ao direito internacional, princípios orientadores de suas ações. Assim, qualquer reparo a eles é logo reduzido à condição de “anti-americanismo”.

As palavras e as coisas

Tomemos as palavras do presidente brasileiro para tentar encontrar nelas vestígios desse sentimento. “O equilíbrio nessa relação (de comércio) é a única possibilidade para permitir que cresçamos juntos, porque se apenas uns crescerem esta árvore poderá ser muito alta, mas os galhos serão frágeis e podem quebrar com a falta de democracia e com o terrorismo existente por causa da má distribuição da riqueza”. Essa é uma fala anti-americana?

Consideremos outra passagem. “Eu não acredito que exista saída individual para qualquer país do mundo. O país pode ter petróleo, pode ter minério de ferro, pode ter muito ouro, diamante. Tudo isso tem um fim. O que não acabará nunca são as relações sólidas que formos capazes de construir enquanto passamos pelo governo”. Ou ainda: “o quanto poderemos construir juntos num mundo onde rico fica cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre; num mundo em que o conhecimento científico e tecnológico não chegou a todos. E apesar dos avanços da ciência e da tecnologia, um bilhão de seres humanos dormem toda noite sem ter comido as proteínas necessárias”. Outro exemplo de anti-americanismo?

Palavras semelhantes foram ditas por outros líderes, entre eles o primeiro-ministro da Mauritânia, Sghair Ould M’Barek, para quem a pobreza e a ignorância são as causas da instabilidade no mundo e que, para combater o terrorismo, é necessário fortalecer a solidariedade internacional pela justiça e pelo respeito mútuo.

Mas, afinal de contas, ele é o primeiro-ministro da Mauritânia, um “país irrelevante” no jogo geopolítico mundial, como não cansaram de afirmar vários jornalistas e analistas nos últimos dias. Segundo essa lógica de raciocínio, a cúpula reuniu dois tipos de líderes árabes: os irrelevantes e os relevantes. Só que estes últimos são anti-americanos e anti-israelenses por defenderam a causa palestina.

Daí para acusações de anti-semitismo e de simpatia pelo “terrorismo árabe” é um pequeno passo. Neste contexto, a pergunta do jornalista da Reuters pode ser colocada para cada um de nós: afinal de contas, qual é a sua definição de terrorismo? Ou, de modo mais claro, quais são os nomes do terrorismo?

Amnésia histórica

Se quisermos buscar afirmações “anti-americanas” a este respeito um lugar privilegiado de pesquisa encontra-se nos próprios Estados Unidos. Poderíamos lembrar de Noam Chomsky, para quem os EUA são a maior potência terrorista do mundo. Ou do cineasta-jornalista-documentarista Michael Moore que já revelou ao mundo várias faces dos negócios do governo dos EUA com nações e terroristas que hoje combatem. Podemos reduzir essas posições aos rótulos "anti-americano" e "anti-Israel"? Como essas são já figuras carimbadas, ouçamos a voz de um outro jornalista americano, David Brooks, correspondente do La Jornada, do México.

Em um recente artigo publicado no jornal mexicano, Brooks diz que a enfermidade mais fatal nos EUA hoje é a amnésia histórica. Ele lembra que, nas últimas semanas, o governo de George W. Bush denunciou fortemente o atrevimento do Irã de prosseguir com seu programa nuclear. E refresca a memória de seus leitores: poucos recordam que, em 1975, Washington aprovou a venda de até oito reatores nucleares ao regime do Xá, e, em 1976, a venda de laser capaz de enriquecer urânio.

Durante duas décadas, os EUA desempenharam um papel chave no desenvolvimento do programa nuclear iraniano. De modo similar, Washington vendeu armas e tecnologia militar a Saddam Hussein, depois que o Xá foi deposto pelos aiatolás, no Irã. De modo similar, Washington financiou Osama Bin Laden e os talibãs, quando o Afeganistão se encontrava sob intervenção soviética. Ou seja, boa parte dos terroristas que os EUA combatem hoje foram financiados e/ou armados por eles próprios em tempos recentes. Cabe repetir a pergunta do jornalista da Reuters, dirigindo-a aos governantes que implementaram essas políticas: qual é mesmo sua definição de terrorismo?

A mesma pergunta poderia ser dirigida ao sr. John D. Negroponte, atual encarregado pela coordenação de 15 agências de inteligência dos EUA. Na década de 80, durante o governo Reagan, Negroponte participou diretamente da organização de esquadrões da morte em Honduras, para reprimir os descontentes com o regime pró-EUA. Também trabalhou ativamente na organização dos contras na Nicarágua, violando leis expressas dos próprios EUA e se envolvendo no escândalo Irã-contras. Hoje, Negroponte é uma das mais altas autoridades na luta anti-terrorista.

David Brooks cita mais um caso de amnésia histórica, relacionado ao exilado cubano Luis Posada Carriles, acusado (inclusive pelo FBI) de vários atos terroristas, entre eles a explosão de um avião cubano em 1976 que resultou na morte de 73 pessoas. Brooks lembra que o subsecretário de Estado dos EUA encarregado da política para a América Latina, Roger Noriega, disse dias atrás que seu governo não sabia onde Carriles estava.

“Quase todos sabem que ele se encontra neste país ao ingressar ilegalmente há umas semanas e retornar para a última esquina do hemisfério onde ele ainda goza de amigos: a Florida”, escreve Brooks. Carriles é uma pedra no sapato da Casa Branca. Seu advogado, Eduardo Soto, confirmou que ele pedirá asilo político, citando sua contribuição aos EUA como agente pago pela CIA nos anos 60.

O dilema de Washington, assinalou o The New York Times, é como justificar o asilo político a um ex-colaborador, considerando a determinação de Bush de que nenhum país deve oferecer refúgios a terroristas.

Por outro lado, entregá-lo a Venezuela, que pediu sua extradição, significaria dar um presente a Hugo Chávez e comprar uma briga feia com o setor cubano-americano da Florida. E ainda há o risco de Posada Carriles revelar assuntos que o governo dos EUA desejam manter secretos. “Ou seja, seria melhor que todos esquecessem tudo isso”, nota Brooks, concluindo: “a amnésia é uma arma chave para a política deste país”.

EUA e Israel: a interdição da crítica

Nenhum destes temas freqüentou, por óbvio, a cúpula entre países sul-americanos e árabes em Brasília. Mas eles povoam e constituem a amnésia histórica que atinge, não só a política dos EUA, mas importantes setores da mídia que reduziram o encontro a um “palanque anti-americano”. Ao final da cúpula, Lula desejou sorte aos povos palestino e iraquiano na conquista da paz e de um futuro melhor. “A paz é como um jogo de paciência, como um xadrez: ao mesmo tempo em que se tem pressa para conquistá-la é preciso ter paciência para aproveitar as oportunidades políticas”, declarou o presidente brasileiro.

Os votos de sorte de Lula a palestinos e iraquianos provavelmente receberão leituras reducionistas que tentarão empurrá-lo para o terreno do anti-americanismo e das posições anti-Israel.

Por incrível que pareça, criticar políticas dos EUA e de Israel implica correr o risco de ser taxado de simpatizante do terrorismo. Um manifesto sobre os resultados da cúpula, divulgado por um conjunto de entidades judaicas, acusa o encontro de fazer uma distinção entre “terrorismo bom” e “terrorismo mau”.

E acusa signatários da “Declaração de Brasília” de usar essa distinção para praticar atos terroristas. Além disso, diz que a declaração não faz qualquer menção à democracia e aos direitos humanos, o que é literalmente falso. No item 1.2., o documento afirma: “para promover a paz, a segurança e a estabilidade mundiais, a cooperação entre as duas regiões deve ser norteada pelo compromisso com o multilateralismo, o respeito ao direito internacional e a observância dos direitos humanos e do direito internacional humanitário”.

É verdade que vários países árabes têm graves problemas na área dos direitos humanos, assim como Israel tem contas a responder em relação aos direitos humanos do povo palestino e dos próprios israelenses (vide o caso dos militares presos por se recusarem a combater em territórios ocupados, os chamados “refuzniks”). O que vale para um lado, não vale para o outro?

Caberia perguntar a tais entidades (que, certamente, repudiam o terrorismo em todas as suas formas) se, entre os nomes do terrorismo, estariam dispostos a incluir, ao lado de Osama Bin Laden e outros nomes ligados a Al Qaeda, os senhores George W. Bush, Donald Rumsfeld, John Negroponte e outros que já negociaram e/ou financiaram pessoas e grupos que fazem do terrorismo hoje sua principal arma (incluindo aí o próprio Bin Laden). Nenhum deles é árabe. Talvez o fato de os EUA serem o principal aliado político, militar e econômico de Israel, prejudique esse reconhecimento. Seja como for, a pergunta do jornalista da Agência Reuters permanece no ar. Afinal de contas, qual a sua definição de terrorismo? Quais são os nomes que colocam a engrenagem do terror em funcionamento no mundo de hoje?

Agência Carta Maior